Por Gilson Barbosa
Para
que a nossa análise seja mais compreensível e didática, apresentaremos as dificuldades apresentadas no contexto que afirma que
Jesus realmente desceu ao inferno entre sua morte e ressurreição
e que pregou aos espíritos ali . Há, no mínimo, três
pontos difíceis de se aceitar, por serem
contraditórios com todo o contexto das Escrituras. Vejamos:
Em primeiro lugar , esse posicionamento
dá margem para a idéia
de que há uma segunda
oportunidade de salvação após
a morte, o que é antibíblico. Caso Jesus tivesse descido e pregado no Hades, essa pregação, pelo texto de
Pedro, teria se destinado apenas àqueles que foram desobedientes nos dias de
Noé. Os espíritos que teriam recebido as palavras de Jesus seriam “os quais
noutro tempo foram rebeldes, quando a longanimidade de Deus esperava, nos dias
de Noé”. Daí surge uma questão difícil: como ficaria a situação dos outros sem salvação que viveram antes e após os dias de Noé?
A segunda oportunidade proporcionada
pela pregação marginalizou todos os demais espíritos?
Em segundo lugar , há uma linha
de pensamento que
acredita que os “espíritos
em prisão ” seriam
os anjos decaídos. Nesse raciocínio, Cristo teria proclamado “aos espíritos em
prisão” a derrota dos poderes satânicos. Em verdade, o contexto
não trata
de demônios, mas, sim, de pessoas (v. 14,16).
Como transformar tais pessoas em espíritos demoníacos? Qual é a base contextual
para isso? O texto diz que os desobedientes estavam nesse estado
(desobediência) enquanto Noé construía a
arca, o que descarta a idéia das hostes demoníacas.
Em terceiro lugar , alguns estudiosos entendem que como a obra redentora de Cristo
não havia se realizado até então, Jesus
teria descido ao Hades a fim de proclamar
a vitória e a libertação aos santos
do período do Antigo Testamento. Mas como já vimos,
a pregação não foi dirigida a todos esses santos, mas somente aos
contemporâneos de Noé, os quais, aliás, não eram “santos”, não eram pessoas
devotadas a Deus. Além disso, temos base para acreditar que o sacrifício de Cristo
na cruz do Calvário
teve eficácia retroativa e que os santos do Antigo
Testamento, quando morriam, iam para a presença de Deus no céu. Assim, essa suposta pregação de Cristo
seria desnecessária: “Far-me-ás ver a vereda da vida ;
na tua presença há fartura
de alegria; à tua mão direita há delícias
perpetuamente” (Sl 16.11).
Segundo o apóstolo Pedro, Cristo desceu ao inferno para pregar. Como
explicar essa afirmação?
“Porque também Cristo padeceu uma
vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus; mortificado,
na verdade, na carne, mas vivificado pelo Espírito; no qual também foi, e
pregou aos espíritos em prisão; os quais noutro tempo foram rebeldes, quando a
longanimidade de Deus esperava, nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca;
na qual poucas (isto é, oito) almas se salvaram pela água” (1Pe 3.18-20).
A questão teológica à qual nos dedicaremos tem seu embrião em uma expressão
extraída do Credo dos Apóstolos, onde uma cláusula
supostamente afirma que Jesus foi crucifixus, mortuus et sepultus, descendit
ad inferna, ou seja, que Ele foi crucificado, morto
e sepultado; e que desceu ao inferno. É importante ressaltar
que, por volta
do século 5º, não havia a idéia de que Cristo desceu ao inferno, mas que simplesmente
foi sepultado ou desceu à sepultura .
Resumindo, a expressão descendit ad inferna
não aparece no credo apostólico. Foi
uma inserção feita
posteriormente na frase “crucificado, morto e sepultado”.
A expressão
“desceu ao inferno ” não
se encontra nas Escrituras
Sagradas, porém, para o desenvolvimento
da idéia teológica, vamos nos prender à interpretação do texto
bíblico. Os defensores da “descida de
Cristo ao inferno” apóiam-se em textos como Atos
2.27, Romanos 10.6,7, Efésios 4.8,9,
1Pedro 3.18,19 e 1Pedro 4.6. Aqui, a nossa atenção
será tributada ao texto bíblico de 1Pedro
3.18-20.
Há uma outra interpretação
corrente que ensina que essa pregação teria sido uma “proclamação de vitória” e
não uma pregação evangelística, mas, mesmo assim, o problema permanece. Por que
Cristo teria proclamado a vitória somente aos rebeldes dos dias de Noé? Por que
não a todos? Contrastando esse ensino com as Escrituras, temos que
“aos homens está ordenado
morrerem uma vez , vindo depois disso o juízo ”
(Hb 9.27). A alma do destinado se fixa inamovível no local
onde se encontra :
“E, além disso, está posto um grande abismo entre nós e vós , de sorte que os que
quisessem passar daqui para
vós não
poderiam, nem tampouco
os de lá passar
para cá ” (Lc
16.26).
Contestamos
todas essas interpretações para nos aliarmos àquela que consideramos mais
coerente. Estamos nos referindo à interpretação proposta por
Agostinho. Primeiramente, o filósofo cristão entendia a passagem
no seu âmbito contextual, levando em conta a pregação
de Noé aos contemporâneos desobedientes.
Esse entendimento e consideração são importantes, pois o esquecimento desse
contexto é a “pedra de tropeço” das interpretações desconexas já analisadas. Para
Agostinho, Cristo atuou “em espírito ” ou “espiritualmente ” na
e com a pregação
de Noé. Assim, Cristo teria pregado aos rebeldes na própria época do patriarca
e por intermédio dele. Wayne Grudem declara que “esse
entendimento do texto
parece, de longe , a solução
mais provável
para essa passagem intrigante
[...] o texto fala ,
antes , de algo
que Cristo
fez sobre a terra
no tempo de Noé”.[i]
Esse pensamento encontra
respaldo e analogia no mesmo livro do apóstolo Pedro, nesta outra declaração: “Da
qual salvação inquiriram e trataram diligentemente os profetas
que profetizaram da graça
que vos
foi dada , indagando que
tempo ou
que ocasião
de tempo o Espírito de Cristo , que
estava neles, indicava, anteriormente
testificando os sofrimentos que a Cristo haviam de vir , e a glória que se lhes havia de seguir ” (1Pe
1.10,11). Nesse texto, observamos como fica clara a ação do Espírito de Cristo
por intermédio dos profetas: “o Espírito
de Cristo , que
estava neles, indicava...”.
Mas fica,
ainda, uma última pergunta: “Se Cristo pregou aos contemporâneos de Noé, por
meio de Noé, por que Pedro diz que Cristo pregou aos espíritos em prisão?”. Será
que tais pessoas estavam presas à época de Noé? Que prisão seria essa? O
apóstolo Pedro diz que Cristo pregou aos “espíritos em
prisão, os quais noutro tempo foram rebeldes”. Há, na sentença, dois tempos
distintos: o passado, expresso na época de Noé, e o presente, expresso no
momento da composição da carta de Pedro. Então, a interpretação seria a seguinte:
que Cristo pregou aos que noutro tempo
foram rebeldes, mas que estavam, agora, na condição de espíritos em prisão, no
inferno.