Muitas pessoas opinam que a Bíblia pode ser interpretada de
inúmeras maneiras e que cada leitor interpreta os textos bíblicos e suas
narrativas como lhe convém. É o leitor quem possui a primazia sobre a
interpretação e não o que o autor bíblico intencionou. As mesmas pessoas
entendem que o texto bíblico deve de alguma maneira, ser interpretado no mundo contemporâneo.
Portanto, inserem seus entendimentos pessoais já formatados pelos seus próprios
pressupostos. É comum pessoas fazerem o texto bíblico dizer o que ele não quis
dizer. Na hermenêutica sagrada isso é chamado de “eisegese”. Mas será que
devemos ter essa atitude para com a intepretação bíblica? Podemos interpretar as
narrativas bíblicas de qualquer forma segundo nossa compreensão do texto?
A primeira questão importante a ser refletida pelos leitores da
Bíblia é que há no texto bíblico somente um sentido, somente um significado. Não
faz sentido o Senhor Deus fazer uso da sua revelação especial (a Bíblia
Sagrada) para mais confundir do que esclarecer seu povo, sua igreja. Pelo menos
não deveria ser essa a intenção de Deus. O plano de Deus para a salvação da humanidade
e para a condução de sua Igreja não é uma charada espiritual.
Os teólogos têm ensinado a perspicuidade das Escrituras. Ou seja, a mensagem das Escrituras é
clara o suficiente de modo que até o menos instruído dos leitores é capaz de
entender a mensagem da salvação que a Bíblia apresenta. Porém não devemos
confundir essa declaração, e a partir daí interpretarmos a Bíblia relativamente
ou subjetivamente. Há nas Escrituras partes que não estão totalmente claras ou
livres de qualquer dificuldade. Há coisas que aprouve ao Senhor não nos
informar claramente a respeito (leia Deuteronômio 29:29).
Foi o então professor de grego da Universidade de Oxford
(Benjamim Jowet) quem propôs a tese de que as Escrituras possuem um único
significado – ou seja, o significado que tinha na mente do autor que escreveu
para os ouvintes ou leitores que o receberam pela primeira vez (Introdução à Hermenêutica
Bíblia, Ed: Cultura Cristã). Sou a favor dessa tese. Mas observamos que vários
elementos nos impedem desse entendimento: a cultura, novas descobertas
cientificas, o contexto pessoal do ouvinte e do leitor da Bíblia, a
contemporaneidade do mundo, o progresso da revelação divina, o desenvolvimento
de teorias na compreensão da Bíblia. É por isso que os diversos movimentos, tais como o feminismo e a teologia gay,
fazem uso descarado das Escrituras para defenderem suas teses extravagantes.
Como teste para verificar e determinar se a teoria do
sentido único é aplicável olhemos para a parábola dos trabalhadores da vinha (leia
Mateus 20:1-16). O dono de uma vinha contrata trabalhadores para trabalharem durante
o dia todo pelo salário de um denário. Foram contratados as nove, ao meio-dia, as
três e às cinco horas da tarde.
Ao findar do dia o dono da vinha instrui o administrador a
pagar os trabalhadores a começar pelos que começaram a trabalhar às cinco horas
da tarde. Em vez de dar a eles um doze avos de um denário, pagou o salário de
um dia inteiro trabalhado. Os que começaram a trabalhar no começo do dia
pensaram que receberiam a mais do que os outros, mas ao saberem que os que
haviam sido contratados ao final do dia receberam a mesma quantia que eles,
começaram a reclamar. O proprietário da vinha responde que não havia sido
injusto com eles, pois havia combinado com os mesmos o valor de um denário ao
dia. Se ele queria ser generoso e bondoso com os trabalhadores da última hora
essa era uma prerrogativa sua. Resumindo: a única interpretação e o único
sentido do texto bíblico é que a parábola é uma declaração da generosidade e da
graça de Deus para com os trabalhadores indignos.
A segunda questão importante a ser refletida pelos leitores da
Bíblia é que ao contrário do princípio único ou verdade ensinada pelo escritor
humano nas Escrituras podemos ter no texto diferentes aplicações. Portanto,
atente para esta regra: não confunda interpretação com aplicação bíblica.
Voltando à parábola dos trabalhadores da vinha temos abaixo as seguintes
aplicações:
Há leitores que entendem que ela trata sobre as várias idades em
que uma pessoa pode converter-se á Cristo. Sendo assim há aqueles que podem ter
um encontro com Cristo “na última hora” ou nos instantes finais da sua vida. É
o caso do ladrão na cruz.
Alguns vêem a parábola como uma referencia a história da
salvação. Afirmam que os primeiros trabalhadores referem-se aos judeus, e os trabalhadores
contratados na última hora é uma referencia aos gentios.
Outros aplicam à parábola a morte do ser humano bem como sua
salvação. Alguns morrem na infância, outros morrem velhinhos. Mas tanto um como
outro pode receber a graça de Deus e ser salvo.
Há também ainda outro entendimento de que a parábola
refere-se à doutrina das recompensas proporcionais no céu pelos serviços
prestados a Jesus Cristo. Neste caso há trabalhadores que mesmo chegando à
salvação na ultima hora recebem recompensa igual ou maior porque em certo
sentido todos os trabalhadores eram indignos, por diversas razões. Podemos
ilustrar isso nos lembrando de crentes que estão na igreja desde a infância,
mas que baseiam sua salvação e méritos apenas nas obras humanas e no
cumprimento da lei.
Essas aplicações não são erradas, porém permanece a interpretação
da parábola no princípio da bondade e generosidade de Deus. Consegue perceber essas
diferenças ao ler as Escrituras? Contudo, nem toda a aplicação é legítima e há
algumas que até mesmo são espúrias. É o caso de pregações que tratam sobre o
sonho de José ou de Davi derrotando Golias. No primeiro caso dizem que Deus vai
realizar seus sonhos, e no segundo que você derrubará os “gigantes da sua vida”
– que seriam dificuldades impossíveis de serem vencidas. O que há de errado com
esse tipo de aplicação? A pergunta é: é isso que Deus intencionou a José e a
Davi? Realizar os sonhos do primeiro e livrar o segundo da morte? Não. Deus não
estava preocupado com José ou Davi, mas sim com o povo de Israel. Os sonhos não
eram de José, mas planos de Deus. O gigante não estava afrontado pessoalmente
Davi, mas o Deus dos exércitos de Israel.
Não se engane: há uma só interpretação, mas várias
aplicações. Mesmo assim as aplicações devem seguir um panorama geral coerente das
Escrituras com o Ser de Deus e os seus planos. Não podemos aplicar as
Escrituras como queremos, mas temos que obedecer as regras da hermenêutica sagrada.
Não confunda interpretação com aplicação bíblica. Não devemos aplicar as
Escrituras de forma incoerente. A Teologia da prosperidade erra quando afirma
que Deus só tem o interesse de nos dar saúde, bênçãos materiais, dinheiro, fama
e sucesso. Os crentes piedosos e tementes a Deus erram quando colocam Deus na
parede exigindo milagres ou curas. Tanto um como outro não estão fazendo
aplicações da Bíblia, mas sim, interpretando as Escrituras de maneira
totalmente equivocadas.
Que o Senhor nos ajude a interpretamos e aplicarmos
corretamente sua Palavra. Que sejamos honestos em não afirmar o que a Bíblia
não afirma o que estamos afirmando.
No amor do Mestre.