segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O LUTO JUDAICO

Por Gilson Barbosa

Há quatro momentos de extrema importância na existência de um judeu: nascimento, início da vida adulta, casamento e morte. Entre esses momentos, falaremos sobre o último. Qual é o procedimento do judeu quando morre um de seus patrícios?

Aproveitando o tema norteado pelo Dia de Finados, pretendemos inserir o leitor no contexto do luto judaico tal como se apresenta nas Sagradas Escrituras. Não obstante haver vários significados, podemos definir “luto” como uma “observância de formas de comportamento costumeiras e convencionais que expressam a desolação e o desespero por parte dos parentes do morto no período que se segue ao seu falecimento”.

Hábitos culturais dos enlutados

Na cultura judaica, o morto é tratado com reverência e respeito, por isso, para o judeu, os mínimos detalhes que envolvem o luto não são somente importantes, mas também necessários. Entre vários pormenores, destacamos os seguintes:

Keriá

É representado pelo ato de se rasgar as vestes. Na Bíblia, há relatos diversos sobre esse comportamento. O patriarca Jó, ao saber que seus filhos haviam morrido, “... se levantou, rasgou o seu manto...” (Jó 1.20). Jacó se desesperou ao ser comunicado, por seus filhos, que um animal tinha despedaçado José. Então, diante dessa notícia, sua atitude foi imediata: “... rasgou as suas vestes...” (Gn 37.34). Da mesma maneira, depois de ser informado sobre a morte do rei Saul, “apanhou Davi as suas vestes, e as rasgou...” (2Sm 1.11).

Nesse procedimento, alguns detalhes são importantes. Atualmente, para que não aconteça haver desperdício de roupas, os judeus adotaram o hábito de usar um lenço ou uma fita que substitui as vestes e mantém a simbologia da keriá sem onerar o enlutado.

A posição para que a keriá seja realizada deve ser em pé. Noivos não são obrigados a rasgar as vestes, em período nupcial, caso coincida com a morte de um parente, visto que o casamento é um ato considerado extremamente sagrado para os judeus e não deve sofrer interferência de nenhum motivo de força maior.

Shivá

Há alguns períodos de tempo determinados para que um judeu, vítima da perda de um ente querido, recupere-se de suas tristezas, consiga controlar e adaptar suas emoções à nova fase de sua vida. Os filhos que perderam seus pais observavam o período de um ano completo.

Para outros casos de luto, os mestres judaicos, fazendo uma analogia com as festas da páscoa e do tabernáculo, que duravam sete dias, acharam por bem normalizar a etapa primária de maior intensidade e enquadrá-la dentro dos sete primeiros dias, período conhecido como shivá, que em hebraico significa “sete”.

São duas as passagens bíblicas que os judeus costumam lembrar nessa ocasião: Gênesis 50.10: “Chegando eles, pois, à eira de Atade, que está além do Jordão, fizeram um grande e dolorido pranto; e fez [José e família] a seu pai uma grande lamentação por sete dias”, e Amós 9;10: “E tornarei as vossas festas [duração de sete dias] em luto...”.

Quando o sofrimento da perda era muito intenso, concedia-se, além dos sete dias, mais três semanas de recuperação do luto sofrido. Tudo isso visava liberar o enlutado para que pudesse viver suas lamentações e sofrimentos sem importunações.

Nos sete dias (shivá) ,o enlutado deve sentar no chão e evitar conversas em excesso, como fez Jó e seus amigos: “E assentaram-se com ele na terra, sete dias e sete noites; e nenhum lhe dizia palavra alguma, porque viam que a dor era muito grande” (Jó 2.13). É importante que o enlutado receba uma visita logo na primeira semana de sofrimento, para que a sua dor da perda seja atenuada. O hábito de se sentar no chão foi substituído pelo hábito de se sentar sobre uma almofada ou sobre um assento bem próximo ao solo.

Cadish

É a oração do enlutado. A pessoa enlutada, ao participar dos serviços de culto nas sinagogas, recita o cadish. Ao pronunciar essa oração, o enlutado, na verdade, manifesta sua fé em Deus em meio à adversidade e, assim, confirma que, independente da situação pela qual está passando, ainda crê em Deus. É uma atitude similar à de Jô, que disse: “Ainda que ele me mate, nele esperarei; contudo os meus caminhos defenderei diante dele” (Jó 13.15).

O objetivo dessa oração é engrandecer e reconhecer a soberania de Deus, apesar dos infortúnios advindos das fatalidades. A oração tem início com a seguinte expressão: “Exaltado e santificado seja o seu grande nome”. Se o falecido não tiver filhos ou parentes, o responsável pela citação do cadish é o encarregado da sinagoga. Ao longo do tempo, adquiriu-se o hábito, por influência do rabi Jacob Israel Emden (1697-1776), de todos os presentes recitarem o cadish juntamente com a pessoa que está de luto.

Lápide sobre a sepultura

Segundo a cultura judaica, as lápides não podem ser ostentosas, feitas com pedras caras. Baseiam-se, para isso, no texto de Salomão, que diz: “O rico e o pobre se encontram; a todos o Senhor os fez” (Pv 22.2), cujo conteúdo remete à igualdade social diante da morte.

O hábito de construir lápides nos túmulos remonta aos dias dos patriarcas hebreus, quando Jacó erigiu uma lápide à sua mulher, Raquel: “E Jacó pôs uma coluna sobre a sua sepultura; esta é a coluna da sepultura de Raquel até o dia de hoje” (Gn 35.20).

A construção de uma lápide é importante, pois simboliza o respeito pelo morto. Tinha a função de evitar que o sacerdote, involuntariamente, mantivesse contato, ainda que por meio do túmulo, com o morto, visto que ao sacerdote era proibido tocá-lo. Além disso, serviria para identificar o local, facilitando sua visualização aos visitantes. Contudo, a decisão de construí-la é livre.

Há, também, o costume de se colocar uma pedra sobre o túmulo do falecido. Sobre esse hábito, é interessante lembrar que o filme A lista de Schindler mostra, em suas cenas finais, vários sobreviventes judeus, salvos durante o holocausto, colocando pedras sobre a lápide de Oscar Schindler. Esse ato demonstra, simbolicamente, o apreço que as pessoas mantêm pelo falecido, o que significa que a sua memória será cuidadosamente lembrada.

Iartseit

É o aniversário da morte. Esta observação anual, geralmente, está atrelada à data de falecimento do ente e não de seu enterro, pois são distintas. Apoiando-se em Provérbios 20.27, o judeu acende uma vela nesse dia, entendendo que a luz e a chama representam a essência humana: “O espírito do homem é a lâmpada do Senhor, que esquadrinha todo o interior até o mais íntimo do ventre”. As velas devem permanecer acesas por um período de 24 horas.

Consideração pelos mortos

Ainda que esses hábitos nos pareçam estranhos, o leitor pôde perceber a consideração e o respeito que os judeus têm para com o falecido. Esperamos que, na próxima oportunidade em que o leitor for comentar alguma passagem bíblica que envolva a morte de algum personagem, recorde-se e considere esses itens culturais, que o ajudarão a se contextualizar ao fato.

Quanto ao nosso comportamento, caso não tenhamos tais procedimentos como questões culturais, devemos, pelo menos, considerá-los curiosos e interessantes e respeitá-los!

Obra de referência:

KOLATCH, Alfred J. Livro judaico dos porquês. São Paulo: Sefer, 2001, p.53-91.

Notas:

1 Dicionário Eletrônico Houaiss, verbete: “luto”.


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