Por Bryan Wilson
O que se pode afirmar das seitas que seja válido em geral dentro de contextos culturais e épocas diferentes? E preciso que tal afirmação não deixe que alguns fatores culturais e históricos concretos empanem os elementos sociais uniformes que se dão na estrutura e desenvolvimento das seitas.
As seitas são agrupamentos de caráter voluntário. Os indivíduos têm certa possibilidade de decidir (teoricamente, uma possibilidade absoluta de decidir) com respeito a sua adesão aos dogmas da seita. O crente deve eleger a seita, embora se trate, na realidade, de uma eleição recíproca (a seita admite ou rejeita essa pessoa). Para passar a ser um de seus membros se requer certa prova de mérito: o indivíduo tem de ser digno de pertencer a ela. Há nisso um forte sentido de identidade: aquele que é admitido se converte em “um dos nossos”. E este “dos nossos” se coloca acima de todos os demais “nossos”, crescendo em força no sentido em que a seita reclama para si um acesso especial e, normalmente, exclusivo as verdades sobrenaturais. A seita é um grupo que exige de seus membros um submissão plena e consciente que se não chega a eliminar todos os demais compromissos deve, ao menos, situar-se acima deles, quer se refiram ao estado, a tribo, a classe social ou a família.
Relacionado a estas características, se encontra o fato que a seita se considera a si mesma como uma elite. Enquanto possuidora da única e verdadeira doutrina, dos ritos adequados e dos modelos corretos de retidão no comportamento social, se considera a si mesma com um grupo aparte, arrogando para si normalmente a salvação exclusiva. As seitas mostram normalmente uma inclinação para o exclusivismo. O estar afiliado a elas se situa acima de todos os demais compromissos de tipo secular, e normalmente exclui os demais compromissos religiosos. Ao separar-se dos outros grupos, as seitas impugnam a santidade e autoridade dos mesmos; o fato de pertencer a uma seita determinada supõe, assim, um distanciamento, e talvez uma hostilidade, frente a outras seitas e grupos religiosos.
Do rigor destes atributos se segue que a maioria das seitas, sendo voluntárias, têm um vida muito intensa e impõe a seus membros responsabilidades, assim como contam também com certos procedimentos para expulsar os desviados. A seita não é uma entidade inconsciente, como poderia ocorrer com uma casta ou um clã em determinadas circunstâncias sociais. Em outras palavras: não é um grupo social que se considere como uma unidade “natural”. Em oposição ao modo tradicional que tinham os judeus de conceber sua fé, ou os povos latinos de conceber o catolicismo, a seita tem consciência de si mesma, e sua formação e recrutamento são processos conscientes e deliberados. Por isso, é também um grupo que possui um sentido de sua própria integridade e que pensa que essa integridade pode ser ameaçada pelos membros despreocupados ou insuficientemente comprometidos. Por isso, as seitas expulsam aqueles que se mostrem indignos delas.
Isto impõe, por sua vez, uma série de normas a cada um dos seus membros. Eles hão de seguir a vida do perfeito sectário e, por conseguinte, a voluntariedade de sua submissão e a prova de que merece ser membro do grupo somente serão possíveis se tenham um sentido de compromisso pessoal. Como as seitas não admitem discriminações quanto ao grau de compromisso, a integridade da seita e claramente a integridade que reina entre seus membros. O autocontrole, a consciência e a retidão são, pois, importantes características do sectarismo.
Embora as seitas professem uma série de ensinamentos, de mandamentos e de práticas distintos dos que mantêm os ortodoxos, esta alternativa não supõe jamais uma total e absoluta negação de todos os elementos existentes na tradição ortodoxa, pois de outro modo não poderíamos qualificar a seita de ser uma seita. Ela ainda se mantêm, ou procura manter-se, e mesmo defender sua posição de ser a forma mais pura e legitima da fé original. Se trata fundamentalmente de acentuar uma série de matizes diferentes, acrescentando-se alguns elementos novos e suprimindo outros. Para propor esta alternativa a seita deve recorrer a algum principio de autoridade distinto daquele que é inerente a tradição ortodoxa, defendendo, ao mesmo tempo, sua supremacia. A autoridade invocada por uma seita pode ser a suprema revelação de um líder carismático, pode consistir em uma reinterpretação dos escritos sagrados, ou bem pode ser a idéia de que os verdadeiros fiéis obterão uma revelação por si mesmos. Em qualquer caso, a seita renega a autoridade oficial da fé ortodoxa.
CARACTERISTICAS GERAIS
As descrições que acabamos de fazer são de caráter geral e apontam a um “tipo ideal”. Consequentemente, é uma caracterização das seitas bastante abstrata e produto, em parte, da mente. Tratando já das seitas concretas, devemos esperar que cada um destes atributos de tipo geral se afaste um pouco da formulação proposta. As seitas estão sujeitas a mudanças, tanto devido as variações que se dão a sua volta como também a um processo de mutação interna. Por conseguinte, alguns atributos podem ir perdendo peso, e outros, em troca, ir ganhando importância em determinados momentos da história de uma seita.
VOLUNTARIEDADE. Embora as seitas sejam organismos de caráter voluntário, existe certa tendência a que os filhos de seus membros abracem a mesma fé de seus pais. No cristianismo ocidental uma determinada seita pode continuar exigindo de seus jovens adeptos a profissão explicita de seus dogmas, o mesmo que fez com seus pais, já que em tais sociedades existe a possibilidade de escolha entre numerosas religiões.
EXCLUSIVISMO. Umas das características essenciais de uma seita e exigir de seus fiéis uma submissão absoluta. A raiz desta atitude e, entre as seitas cristãs, o principio de afiliação exclusiva que rege no cristianismo e que surge do fato do Deus de Israel ser um Deus zeloso. Normalmente, o adepto assume seu compromisso com a seita de forma distinta dos demais homens: com efeito, a seita se converte no ponto mais importante com respeito a sua pessoa. Quando se faz alusão a ele, o que interessa saber antes de qualquer outro dado, e que se trata de um membro de tal ou qual seita.
MÉRITOS. As seitas exigem um ato de aceitação. Mas quando as seitas perduram durante muito tempo, semelhante prova de méritos pode converter-se em algo puramente nominal.
AUTOIDENTIFICAÇÃO. Qualquer de nós, arrastados pelo desejo de impor ao mundo uma ordem conceitual, sente a tentação de buscar limites precisos e categorias inequívocas. As seitas parecem uma afirmação quase natural desse mesmo principio. E não poderia ser de outro modo, dado que as seitas são entidades sociais construídas pelos homens e com consciência de si mesmas. Sem renunciar a esse enunciado geral, temos de admitir que na realidade pode resultar tão árduo o trabalho de definir com certeza as características de uma seita como nos trabalhos antropológicos o é definir entidades as vezes tão vagas que são as tribos. As seitas, semelhantemente as tribos, mantêm uma forte concepção de “nós” em contraposição com todos os demais. Mas este “nós” pode variar quanto a sua aplicação, como ocorre com as tribos, e apresentar limites pouco definidos. Quem se acha completamente comprometido normalmente não tem problemas, mas há casos em que estão vinculados as seitas os chamados “simpatizantes” que jamais procuraram a admissão nelas, ou que jamais a conseguiram. Possuem também em seu bojo jovens que não poderão fazer parte dela até alcançarem certa idade. E, o que é mais significativo, as seitas podem considerar a alguns movimentos, de certo modo, mais próximos da verdade que outros. Isto pode ocorrer, por exemplo, quando dentro de uma seita ocorre um cisma. No principio, os grupos cindidos entre si possivelmente lançarão anátemas múltiplos, fortalecendo consideravelmente seu sentido de autoidentificação pelo fato de terem um inimigo palpável. Mas, uma vez que a ruptura inicial sumir no esquecimento, ambos os grupos podem chegar a admitir que têm mais em comum que motivos de separação, levando os velhos antagonismos de caráter recíproco a se apaziguarem.
STATUS DE ELITE. Até que ponto uma seita considera a si mesma como uma elite social é algo que depende de toda uma série de fatores concretos, os mais importantes dos quais são a tradição escatologica recebida e o caráter das relações que os membros da seita mantêm com os de fora. Dentro do cristianismo é fundamental a idéia de uma certa eleição: o velho conceito de tipo étnico de um povo escolhido foi herdado do judaísmo e transmitido a fé cristã por aqueles que voluntariamente a abraçavam. Apesar de inclusas dentro da tradição cristã, as seitas que têm buscado sua legitimação através das Escrituras nem sempre conseguem facilmente afirmar que elas e somente elas são os eleitos de Deus.
EXPULSÃO. Cabe pensar que, em geral, a prova de méritos prévia à admissão em uma seita implica já nos critérios para continuar pertencendo a ela. Mas na prática vemos que se bem que alguma seita mantém seu nível de rigor, existem algumas em que o nível daquele que estão afiliados começa a relaxar. Isto pode acontecer quando uma seita adota medidas extremas para separar-se do resto da sociedade e começou a nutrir suas fileiras, em geral, a base dos nascidos em seu próprio meio, levando a surgir o questionamento de seus valores.
CONSCIÊNCIA. Igualmente pode variar o grau de autoconsciência e de compromisso consciente que têm lugar dentro de uma seita. Isto ocorre, sobretudo, quando se impõe o princípio de nutrir as fileiras da seita a base dos nascidos em seu próprio seio, se bem que algumas seitas fazem um trabalho se socialização de suas crianças que ao abandonarem a primeira infância já tem consciência de suas diferenças com o resto do mundo.
Ocorre também outro caso em que a consciência, se não já a autoconsciência, parecem sofrer uma transformação insólita dentro de alguns movimentos sectários. Se trata do caso em que se aceita com tal entusiasmo a idéia de um status de elite, que os fieis crêem ser um povo escolhido, independentemente de sua conduta moral. Ao ser os escolhidos, podem chegar a considerar-se perfeitos: e deste modo, a conduta que em outros podia ser pecaminosa, não pode, por definição, ser pecaminosa para eles. Esta tendência — o antinomianismo — há tido lugar em uma série de seitas cristãs, especialmente nos séculos XVI e XVII. Tal posição sempre tem se chocado com uma profunda desaprovação, já que se trata de uma doutrina que dá rede a solta aos membros de tais seitas para se comportarem como melhor lhes apraz. Este fato contrasta fortemente com a tendência mais freqüente ente as seitas de impor a seus membros normas de decoro e de conduta mais severas que as de outros homens, a fim de que assim se manifeste sua adesão a uma verdade superior.
LEGITIMAÇÃO. Nenhuma seita faz sua aparição sem contar com uma justificação de tipo ideológico. As seitas se atribuem uma autoridade sagrada, com o fim de persuadir aos homens que abandonem o sistema religioso ortodoxo. É necessário haver uma pessoa — ou várias pessoas — com uma autoridade que lhes permita dar a conhecer esta legitimação. Quando a seita se forma em torno de um líder carismático (o qual pode ser, por sua vez, a fonte sagrada e seu interprete), a legitimação está constituída pelo carisma. Em outros casos se reconhece um colégio de líderes, e são criados métodos para nomear ou eleger aos líderes. Mas também há seitas cujos membros negam veementemente que exista intermediário entre Deus ou sua palavra e eles. Estes rechaçam qualquer forma de organização humana, crendo-se chamados eles mesmos a fazer o que Deus ordena. Estas seitas se opõem a autoridade e tornam-se profundamente anticlericais, sua oposição lança-se tanto contra a organização da Igreja como contra seus ensinamentos.
FONTE:
Wilson, Bryan: Sociologia de las sectas religiosas, Madrid, Ediciones Guadarrama, 1970. Tradução e adaptação do texto para língua portuguesa feita por Josué Giamarco
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