Por João Flávio Martinez, do CACP
Acreditar que o Jesus histórico realmente existiu não é mais problema para os historiadores de maneira geral, pois há várias provas comprobatórias nesse sentido. Evidências filológicas, arqueológicas, paleográficas... Enfim, negar a passagem de Jesus pela terra seria hoje como assinar um atestado de obtusidade histórica ou se declarar descontextualizado com as novas descobertas.
Entretanto, alguns arvoram que, apesar da historicidade humana de Jesus, seus seguidores o mitificaram com muitas lendas sem estribo lógico, fazendo algumas questões parecerem em truanices! Nessa pequena minuta sobre este tema, nos deteremos em o quanto cooperou a “lenda” da concepção virginal de Cristo para a sua deificação. Não quereremos provar com argumentos teológicos a concepção virginal de Jesus, afinal de contas isso é uma questão de fé. Nosso objetivo é mostrar que realmente os cristãos da época acreditavam nisso, não por causa de uma mitologia antecessora ao acontecimento cristológico, mas pelas evidências que muitos alegaram ter!
A mitologia egípcia, babilônica e greco-romana e a questão da divindade de Jesus
Bem, sabemos que culturas bem anteriores à judaica-cristã já acreditavam em teofanias.1 Vejamos alguns exemplos:
Egito
O faraó egípcio retrata bem o que estamos falando. Os faraós centralizavam todo o poder em si mesmos e eram tidos como encarnação de Hórus, o grande deus, filho de Osíris (senhor dos mortos), e da deusa Ísis. Por conta de tal ostentação, os faraós conseguiram ter governabilidade extremamente teocrática e manter uma soberania durável, além de serem cultuados como divinos.
Mesopotâmia
As religiões mesopotâmicas abrangem as crenças e práticas religiosas que moldaram a cultura dos antigos sumérios e acadianos, e também de seus sucessores, os assírios e os babilônios, habitantes da Mesopotâmia até pouco antes da era cristã. Para eles, a escolha do rei, diferentemente da teofania egípcia, era uma eleição divina, ou seja, acreditavam que os reis mais valentes, perspicazes e vitoriosos deveriam ostentar o cetro real e governar por ordem dos deuses. Dos panteões dos deuses, podemos destacar dois principais: Marduk e Baal.
Roma antiga
Segundo a lenda divulgada pelo grande escritor Vergílio, no ano 29 a.C., Rômulo e Remo foram os fundadores de Roma. A tradição conta que o usurpador Amúlio, após derrubar seu irmão Numitor do trono de Alba Longa, obrigou Réia Sílvia, filha de Numitor, a converter-se em virgem vestal (sacerdotisa de Vesta, deusa do fogo), para que não gerasse descendência do antigo rei. Entretanto, a jovem Réia recebeu a visita do deus marte, que lhe apareceu em forma de serpente. Da relação sexual de Réia com está serpente Rômulo e Remo foram concebidos. E, devido a esse sinal miraculoso, Roma fora fundada.
Os apóstolos ousariam apelar para uma mitologia pagã?
A região da Mesopotâmia é o lugar em que encontramos maior similaridade com a cultura judaica, e vice-versa. Tanto é que os judeus também acreditavam em uma teocracia: “Então Samuel tomou o chifre do azeite, e ungiu-o no meio de seus irmãos; e desde aquele dia em diante o Espírito do SENHOR se apoderou de Davi; então Samuel se levantou, e voltou a Ramá” (1Sm 16.13). Isso, no entanto, não significa que eles tinham afinidades religiosas com os mesopotâmicos. Ao contrário, criou rivalidade entre eles. Prova disso é que essa problemática foi um dos vários motivos de guerras entre os judeus e os povos antigos da região (cf. os livros de Reis e Crônicas). Depois do cativeiro babilônico, os hebreus se fecharam ainda mais. No período helênico, aproximadamente no século II a.C., o povo hebreu resistiu bravamente à helenização cultural impetrada por Antíoco Epifânio. Isso mostra a condição sociológica em que sempre se manteve o povo judaico — separado e antagônico em relação à mitologia pagã!
A contextualização sociológica da época de Cristo é extremamente relevante para entendermos se alguma mitologia havia-se infiltrado ou penetrado na cultura judaica. O dr. R. L. Hoover explica o seguinte sobre a questão: “O judaísmo, no primeiro século da era cristã, era uma religião baseada na revelação de Deus por meio das Escrituras, isto é, da Lei e dos Profetas. Os judeus enfatizavam o monoteísmo e não era permitido sequer louvar ou admitir a existência de qualquer outro deus”.2
O porquê de estarmos explicando tudo isso é para responder às considerações de alguns que argumentam negativamente a respeito da concepção virginal de Jesus. Ou seja, para responder àqueles que acreditam que, se não existissem as lendas que antecederam o fato cristão, Jesus jamais teria sido aceito como o Messias que nascera de uma virgem.
Bem, mas será que a teologia cristã precisaria de mais esse argumento para “mitificar” ou divinizar Jesus?
Será que os apóstolos, sendo judeus, ousariam apelar para uma mitologia pagã?
Algumas considerações relevantes
1). O mais relevante para a aceitação messiânica de Jesus era se ele descendia da linhagem de Davi, pois todas as profecias assim arvoravam a respeito do Cristo: “Eis que vêm dias, diz o SENHOR, em que levantarei a Davi um Renovo justo; e, sendo rei, reinará e agirá sabiamente, e praticará o juízo e a justiça na terra. Nos seus dias Judá será salvo, e Israel habitará seguro; e este será o seu nome, com o qual Deus o chamará: O SENHOR JUSTIÇA NOSSA” (Cf. Jr 23.5,6 e Mq 5.2). Por isso, tanto Mateus quanto Lucas deixaram claro que José e Maria eram descendentes da tribo de Judá — tribo de Davi (Cf. Mt 1 e Lc 3.23-38).
2). A profecia de Isaías 7.14, em que afirma que a virgem conceberia, servia, para o momento cristológico, mais de embaraço para a exposição do evangelho do que para corroboração da missão messiânica de Cristo. Explicamos: a aplicação imediata desse vaticínio seria uma nubente que fora virgem até a ocasião do seu casamento. Antes de o seu filho ter idade suficiente para distinguir entre o certo e o errado, os reis da Síria e de Israel seriam destruídos (Is 7.16). Ou seja, o fato já havia ocorrido como sinal na época do próprio profeta. Elucidar aos judeus que tal profecia teve um duplo cumprimento foi muito difícil para os discípulos de Cristo.
Já que Mateus e Lucas haviam provado a messianidade de Jesus pela genealogia davídica, seria muito mais aproveitável para a causa se os discípulos tivessem obliquado uma polêmica dessa envergadura que, de maneira nenhuma, tiraria a ótica messiânica cristã. Além do mais, exige muita credibilidade da parte dos críticos e dos céticos acreditar que autores judaicos monoteístas como Mateus e Lucas poderiam empregar mitologia pagã em suas narrativas.
3). Os apóstolos e os discípulos cristãos eram etimologicamente judeus, e tinham uma educação religiosa judaica, o que tudo indica que a maneira de pensar era bem diferente da maneira greco-romana. Também, no principio da pregação evangélica, os seguidores de Cristo acreditavam que Jesus deveria ser primeiro e, de maneira exclusivista, apregoado aos seus patrícios judeus. Só um tanto depois, mais precisamente após a experiência de Pedro junto à família gentílica de Cornélio é que esse paradigma foi alterado e o evangelho pregado a todos (At 10).
4). A sede da Igreja ficou em Jerusalém até a sua destruição por Tito no ano 70 d.C. Isso, com certeza, protegeu a teologia cristã em seu alicerce contra o sincretismo religioso que vigorava no mundo romano.
Enumeramos essas quatro ocorrências para mostrar que os discípulos não levariam vantagens em inventar um embuste como esse na propagação do evangelho, principalmente entre os judeus. Jesus poderia ter sido pregado sem necessariamente expor seu nascimento virginal. Seria falta de critério uma pregação com mitos greco-romanos dentro do contexto judaico oriental, a não ser que os apóstolos acreditassem mesmo que Jesus era nascido de uma virgem.
A Igreja Apostólica nunca teve dúvida sobre a questão de Jesus ter sido concebido por uma virgem. Os primeiros líderes da Igreja cristã, chamados de Pais da Igreja, corroboraram positivamente com os ensinos dos apóstolos. Em 110 A.D., Inácio escreveu: “Pois nosso Deus Jesus Cristo [...] foi concebido no ventre de Maria [...] pelo Espírito Santo. Pois a virgindade de Maria e Aquele que dela nasceu... são os mistérios mais comentados em todo o mundo” (grifo do autor). Inácio recebeu a informação de seu mestre, o apóstolo João.
Aristides, em 125 A.D., fala do nascimento virginal de Jesus: “Ele é o próprio Filho do Deus excelso que se manifestou pelo Espírito Santo, desceu dos céus e, nascido de uma virgem hebréia, se encarnou a partir da virgem” (grifo do autor).
Em 150 A.D., Justino oferece muitas provas a favor da idéia do nascimento milagroso do Senhor: “Nosso Mestre Jesus Cristo, que é o primogênito de Deus Pai, não nasceu como resultado de relações sexuais [...] O poder de Deus, descendo sobre a virgem, cobriu-a com sua sombra e fez com que, embora ainda virgem, concebesse...”3 (grifo do autor).
O primeiro grande cristão de fala latina foi o advogado convertido Tertuliano. Ele nos informa que, em seus dias (ano 200 A.D.), existia não apenas um credo cristão estabelecido, sobre o qual todas as igrejas concordavam. Ele cita esse credo quatro vezes, o qual inclui as palavras ex virgine Maria, que significa: “da Virgem Maria”, dando a entender claramente que Cristo nascera de uma mulher virgem.4
O historiador e erudito R. E. Brown ainda comenta: “Paralelos não-judaicos têm sido encontrados nas religiões mundiais (O nascimento de Buda, de Krishna e do filho de Zoroastro), na mitologia greco-romana, nos nascimentos dos faraós (com o deus Amon-Rá agindo por intermédio de seu pai) e nos nascimentos sensacionais dos imperadores e filósofos (Augusto, Platão etc.). Mas esses ‘paralelos’ sempre envolvem um tipo de hieros gamos em que um macho divino, em forma humana ou em outra, insemina uma mulher, seja por meio do ato sexual normal, seja por meio de uma forma substituta de penetração. Eles não são realmente semelhantes à concepção virginal não-sexual que está no âmago das narrativas da infância de Jesus, concepção esta em que nenhum elemento ou deidade macho insemina Maria [...] Portanto, nenhuma busca por paralelos nos tem dado explicação verdadeiramente satisfatória de como os primitivos cristãos chegaram à idéia de uma concepção virginal — a menos, é claro, que ela realmente tenha acontecido historicamente”.5
Independente de se acreditar no milagre do nascimento virginal de Cristo ou não, para nós, nesta exposição, é mais relevante mostrar que os primeiros cristãos só teriam motivos para falar desse nascimento misterioso caso eles realmente acreditassem nesse milagre. Então, podemos afirmar que qualquer conjectura de uma ideologia pagã no seio primitivo da Igreja para elevar Cristo a divino seria falar de uma incongruência muito grande, seria desconhecer a cultura judaica e sua grande complexidade. O que realmente esperamos é que o leitor reflita e consiga fazer suas próprias conjecturas sobre o explicitado nestas sucintas linhas.
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Bibliografia
Dicionário Aurélio Século XXI, em CD ROM.
Hoover, R. L. Os evangelhos. Editora EETAD.
Barsa 2001, em CD ROM.
James, T. G. H. Mitos e lendas do Egito antigo. Ed. Melhoramentos.
Stamps, D. C.. Bíblia de Estudo Pentecostal. Editora CPAD. 1995.
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