Por Gilson Barbosa
Alguns crentes da Igreja Primitiva ficaram espantados quando souberam que Saulo havia se convertido ao cristianismo. Ananias disse “Senhor, tenho ouvido muita coisa a respeito desse homem e de todo o mal que ele tem feito aos teus santos em Jerusalém”. Em Damasco “todos os que o ouviam ficavam perplexos e perguntavam: ‘Não é ele o homem que procurava destruir em Jerusalém aqueles que invocam este nome? E não veio para cá justamente para levá-los presos aos chefes dos sacerdotes?”’. De fato, a maneira como acontece algumas conversões cristãs nos causam admiração e comprovam que para Deus nada é impossível.
Saulo de Tarso
A presença da família de Saulo, em Tarso da Cilícia, era proveniente da diáspora judaica. Segundo o livro “Apóstolo Paulo – Vida, Obra e Teologia”, Jerônimo faz menção de que a família de Saulo, outrora, havia emigrado de Giscala da Galiléia (BECKER, 2007). Saulo nasceu em Tarso da Cilícia, uma cidade da Turquia, anexada como província romana e que detinha a fama de ser um importante centro cultural e financeiro. Conforme está registrado em sua carta aos Filipenses (3.5) Saulo era “pertencente ao povo de Israel, à tribo de Benjamim, verdadeiro hebreu”, mas por ser judeu da diáspora e por nascimento detinha a cidadania romana (At 22.28).
É muito comum no meio pentecostal dizer que Saulo foi transformado em Paulo – uma menção ao processo de conversão. Talvez seja assim por um entendimento e interpretação errada do texto em Atos 13.9 que diz “Todavia Saulo, que também se chama Paulo, cheio do Espírito Santo, e fixando os olhos nele...”. Porém, nesse mesmo sentido, porquê não se diz que Silas foi transformado em Silvano? O correto é entender a alternância dos nomes de outra forma, como demonstra certo estudioso: “Saul, Saulus, Paulus. Três nomes para o mesmo personagem. Como criança judaica, o apóstolo recebeu, no oitavo dia do nascimento, com a circuncisão, o nome de Saul, primeiro rei de Israel; aliás, era da tribo de Benjamim (Rm 11.1; Fl 3.5). Vivendo no mundo judeu-helenista, usava a forma grega deste nome: Saulos (Saulo). Mas agora o apóstolo sai do âmbito do judaísmo, onde o nome Saul / Saulo era significativo, e vai atuar no espaço do império romano, apelando inclusive para sua cidadania romana (16.34). Por isso, Lucas usa daqui para frente o sobrenome latino, Paulus (Paulo), que significa ‘baixinho”’[1]
Saulo era um homem marcado pelas influências de três nações: Roma, Grécia e Israel. Cada uma dessas contribuiu com ele em muitos sentidos; ele fez menção e reivindicou cidadania romana quando foi preciso (At 22.25) e em alguns dos seus escritos deixou implícito conhecer os hábitos da cultura grega, tais como os esportes (II Tm 4.7; 2.5; I Co 9.26) e como religioso, era adepto do grupo dos fariseus – influência da religião judaica. Foi educado na língua aramaica, mas desde menino aprendeu também a língua grega – falada cotidianamente na cidade de Tarso. Deduzimos que era de família abastada, pois seu pai era um importante fabricante e negociante de tendas na sua cidade.
O farisaísmo de Saulo
Após a cerimônia do Bar Mitzav[2], aos 13 anos de idade, seu pai o enviou para estudar em Jerusalém, na escola rabínica do famoso Gamaliel, como ele mesmo atesta em Atos 22.3: “instruído aos pés de Gamaliel”. A linha religiosa, da escola, era a do grupo dos fariseus. Estes, fazem parte dos grupos que surgiram durante o período denominado intertestamentário. A origem dos fariseus situa-se no período da revolta macabéia (166-159) em que ouvimos falar do surgimento de um grupo de judeus zelosos da Lei, os hassidim (METZGER, 2001). Etimologicamente a expressão fariseus, “em grego farisaioi, é um nome derivado do hebraico perushim. Seu significado é ‘os separados’. É bem possível que este nome deva sua origem ao fato dos fariseus, que se consideravam piedosos, terem se afastado a partir da segunda metade do século II a.C. do restante do povo, considerado por eles como ímpio, isto é, como desobediente e infrator das prescrições divinas”[3].
Saulo era um devoto e fanático fariseu. Em Filipenses 3.5,6 ele diz: “quanto à lei fui fariseu; quanto ao zelo, persegui a igreja; quanto à justiça que há na lei, fui irrepreensível”. Conforme certo estudioso, Saulo “adquiriu um conhecimento profundo do Antigo Testamento e dos métodos exegéticos dos rabinos, tornando-se um adepto fervoroso dos fariseus e defensor fanático da aplicação integral da lei e tradição dos antepassados”.[4] Senão na prática, pelo menos na questão teórica da lei os fariseus eram meticulosos. Porém, afoitos às regras, criaram muitas outras adicionais, estabelecendo-as na primeira parte do Talmude[5] - a Mishna. Jesus os criticou severamente devido a isso, a ponto de dizer que atavam fardos pesados e difíceis de suportar, e os colocavam aos ombros dos homens; mas eles mesmos nem com o dedo queriam movê-los (Mt 23.4).
Salvação pela graça
A ilusão de estar cumprindo todas as exigências da lei proporcionara a Saulo certa confiança religiosa – alcançar o favor de Deus por meio das obras. Segundo o pastor Antonio Gilberto, havia duas correntes antibíblicas no período apostólico que procuravam contestar a doutrina da graça: o legalismo e o antinomismo: “Segundo este [o legalismo], só se adquire a salvação e a excelência mediante a lei mosaica. Este sistema, defendido por certos judeus cristãos em Roma, ensinava que a justificação era decorrente das obras da lei”.[6]
Segundo Philip Yancey “graça significa apenas que o amor de Deus é dado gratuitamente, sem exigências embutidas. A graça é o oposto do legalismo”. [7] Há muitos crentes, hoje, que sufocados por exigências estatutárias das igrejas, por imposições com respeito às tradições denominacionais, por uma interpretação arbitrária e tendenciosa das Escrituras, pensam também que cumprindo essas exigências e imposições adquirem algum favor salvífico de diante de Deus.
Jesus disse que viria a hora em que qualquer que matasse um dos discípulos julgaria estar prestando um serviço a Deus (Jo 16.2). Essa era a condição de Saulo, pois, apesar de muito religioso, consentiu na morte de Estevão (At 7.60), agredia violentamente os cristãos (At 8.3) e respirava ameaças e mortes contra os discípulos do Senhor (At 9.1). O legalista se apega mais as exigências da letra do que ao espírito da lei. Muitos transformam esse apego em ódio aos que não seguem suas práticas e modo de vida, ou seja, o legalista não tolera o ser diferente. Que tipo de cristianismo é esse? Eles precisam saber que a justiça pelas obras anula a graça (Gl 2.21).
A conversão de Saulo
Conforme o teólogo Millard Erickson (Teologia Sistemática, p. 394) a conversão é um ato único que possui dois aspectos distintos, mas inseparáveis: o arrependimento e a fé. Alguns entendem a conversão como a aderência aos ritos, cerimoniais e práticas prescritivas do seu grupo religioso. No judaísmo são denominados de prosélitos, porém não se podem convalidar eficientemente essas conversões. Segundo Nilton Bonder (Judaísmo para o século XXI) há prosélitos mentirosos que manipulam o ato de conversão para obtenção de favorecimentos afetivos e mesmos materiais. A conversão ao cristianismo não é análogo a isso, pois exige arrependimento e fé. Conforme Fernando Martinez (Eu Creio) a fé em Jesus é a graça salvadora que nos induz a confiar e descansar no Senhor e acrescenta que segundo Bancroft “Tem-se dito que o arrependimento é a fé em acção, e que a fé o arrependimento em repouso”.
No caminho para Damasco Jesus se encontra com Saulo e lhe pergunta: “Saulo, Saulo, por que me persegues?”. O alento aos crentes da Igreja Primitiva era que Saulo perseguindo os irmãos, perseguia na verdade o Senhor Jesus. O Senhor lhe diz: “Duro é para ti recalcitrar contra os aguilhões”. Segundo o Dicionário Aurélio, recalcitrar significa “resistir, desobedecendo; não ceder; teimar; replicar; obstinar-se”. Na língua original “resistir ao aguilhão era aparentemente uma expressão comum, encontrada tanto na literatura grega como na latina – uma imagem rural, baseada na prática dos lavradores aguilhoarem seus bois nos campos. Embora pouco familiar para nós, todos naqueles dias conheciam o significado. Os aguilhões eram geralmente fabricados com pedaços finos de madeira, rombudos de um lado e aguçados de outro. Os lavradores usavam a ponta aguçada para forçar um boi teimoso a andar. O animal às vezes escoiceava o aguilhão. Quanto mais ele dava coices, tanto mais o aguilhão se enterrava na carne da perna, causando dor ainda maior”. [8] Quanto mais Saulo lutasse contra os crentes, mais se feriria. Na ida para Damasco, no entanto, Jesus coloca um ponto final na violência de Saulo contra os crentes.
Os companheiros de Saulo ouviram ou não a voz de Jesus?
Na narrativa lucana de Atos 9.7 os homens que estavam com Saulo ouviram a voz de Jesus que falava com ele, mas não viam ninguém. No entanto, o mesmo Lucas, na narrativa de Atos 22.9, diz que os homens não ouviram a voz daquele que falava com Saulo. Afinal, como relacionar os dois textos? São contraditórios?
Segundo Gleason Archer (Enciclopédia de Dificuldades Bíblicas, p. 409) a explicação dessa aparente discrepância é a seguinte: “O grego faz distinção entre ouvir um som, simples barulho, e ouvir uma voz que transmite uma mensagem clara. Quando colocamos as duas declarações juntas, descobrimos que os companheiros de Paulo ouviram a voz, como de um som (algo parecido como a multidão que ouviu o som da voz do Pai falando ao Filho, em João 12.28, mas pensou que fora um trovão); contudo aquelas pessoas não entenderam a mensagem, como os companheiros de Paulo tampouco entenderam. Só o apóstolo Paulo entendeu a mensagem”.
Na Nova Versão Internacional, entendemos que os que acompanhavam Paulo viram a luz, mas não entenderam a voz daquele que falava com ele - exatamente como deve ser entendido no original.
Uma palavra de consolação
Querido leitor, se você está pregando o evangelho de Jesus Cristo a alguém da sua família ou a alguém do seu grupo de amigos e tem encontrado resistência ou até mesmo tem sido desafiado pela “religiosidade”, incredulidade ou indiferença deles, não desanime. Temos vários exemplos bíblicos de que Jesus tem poder para salvar o mais destemido e corajoso dos pecadores, e o mais empolgante destes é o do estudo em tela. Não desanime, pregue o evangelho!
[1] MAZZAROLO, Isidoro. Atos dos Apóstolos. Ed: Loyola. p. 45
[2] B'nai Mitzvá (filhos do mandamento) é o nome dado à cerimônia que insere o jovem judeu como um membro maduro na comunidade judaica. Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/B'nai_Mitzv%C3%A1
[3] WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento. Ed: Sinodal / Paulus, p. 377.
[4] ZILLES, Urbano. Profetas, apóstolos e evangelistas. Ed: EDIPUCRS, p. 61.
[5] O Talmude é um registro das discussões rabínicas que pertencem à lei, ética, costumes e história do judaísmo. É um texto central para o judaísmo rabínico, perdendo em importância apenas para a Bíblia hebraica. Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Talmude
[6] GILBERTO, Antonio. Lições Bíblicas. Ed: CPAD, p. 36 (Mestre).
[7] YANCEY, Philip. Desventuras da Vida Cristã. Ed: Mundo Cristão, p. 145.
[8] SWINDOLL, Charles. Dia a Dia com os heróis da fé. Ed: Mundo Cristão, 2007, p. 297
/ser Apóstolo Paulo, todo crente quer, pagar o preço que ele pagou será que alguem quer?
ResponderExcluirEstimado (a) anônimo
ResponderExcluirApóstolo Paulo só teve um e não terá outro nunca mais. Admirar Paulo é uma coisa; ser ele ou como ele é outra. Esses que dizem querer ser Paulo, ainda não pararam para pensar nas implicações deste desejo.
Grande abraço,