O que a Confissão de Fé de Westminster diz sobre a interpretação das
Escrituras
Por Augustus Nicodemus Lopes
O neoliberalismo
Muitos
estudiosos e teólogos modernos concordam que o antigo liberalismo, como
movimento histórico do século passado, está agonizando. Entretanto, muitos dos
pressupostos do antigo liberalismo quanto à interpretação das Escrituras têm
sobrevivido e encontrado expressão em várias correntes teológicas e
hermenêuticas que historicamente pertencem ao período pós-moderno.
O rótulo
“neoliberalismo” tem sido aplicado a esse movimento teológico-hermenêutico que
preserva alguns dos pressupostos racionalistas do antigo liberalismo e que se
utiliza de conceitos da filosofia, hermenêutica, linguística e teologia
pós-modernas. É particularmente o sistema de interpretação das Escrituras do
neoliberalismo que se constitui um desafio urgente à doutrina reformada.
A hermenêutica neoliberal
De acordo com
a hermenêutica neoliberal, é impossível alcançar-se o sentido original do texto
bíblico. É possível explorar uma pretensa “reserva-de-sentidos” que há no texto
da Bíblia, extraindo “sentidos” que dependerão das circunstâncias em que
estivermos. Consequentemente, a hermenêutica neoliberal coloca a verdade apenas
como um ideal a ser perseguido, ideal esse que jamais será alcançado com
segurança aqui nessa vida. Como resultado, jamais poderemos ter certeza
absoluta de que conhecemos a verdade. O máximo que poderemos fazer é afirmar
com convicção um dos muitos sentidos que poderíamos encontrar no texto.
Partindo de
algumas teorias modernas de lingüística, essa hermenêutica sugere que os
autores bíblicos poderiam ter escrito algo que não correspondia à sua intenção
original. Exagera a distância entre o autor e o texto ao ponto de não podermos
mais encontrar a intenção do autor nos textos.
Ainda postulam
que a Bíblia nada mais é que uma interpretação da vida e do mundo feita por
seus autores, uma maneira de interpretar a realidade. O texto bíblico é
reduzido ao resultado da busca de sentido na realidade e na história feita
pelos seus autores. Esse ensino fere frontalmente o conceito reformado de que a
Bíblia, mesmo tendo sido escrita por homens situados no tempo e no espaço, é a
revelação autoritativa de Deus, e a transforma numa tentativa humana de
compreender a realidade.
Também afirma
que é impossível termos conhecimento do sentido pleno e verdadeiro das
Escrituras, já que o texto não tem um único sentido, pleno e verdadeiro, mas
múltiplos sentidos. Seguindo o pluralismo religioso do pós-modernismo, rejeita
o conceito de verdade proposicional (de que uma idéia possa ser verdadeira) e
assim a possibilidade de alcançarmos a interpretação correta de uma passagem
bíblica.
Desafios à teologia reformada
Essa abordagem
interpretativa tem servido de ferramenta para o surgimento das teologias
ideológicas, teologias feministas, de libertação e outras, já que transfere o
sentido do autor e do texto para o leitor.
Tradicionalmente,
a hermenêutica reformada reconhece a necessidade de aplicarmos o texto bíblico
às diversas situações em que nos encontramos, mas vê essas aplicações não como
“sentidos” novos e múltiplos de um mesmo texto, mas como a significação do
sentido único de um texto para as diversas situações da vida.
As implicações
da hermenêutica neoliberal acabam por tornar a mensagem das Escrituras
inacessível à Igreja. De acordo com eles, acabamos sem Escritura, sem
revelação, sem verdade e sem pregação, podendo, no máximo, pregar apenas uma
interpretação nossa do texto, mas jamais a verdade divina.
Se não podemos
alcançar o sentido das Escrituras, não nos resta qualquer base para a doutrina
e a prática da igreja, para decisões teológicas, para o ensino doutrinário,
para a ordem eclesiástica. Instala-se o caos onde cada um pode interpretar como
quer as Escrituras, as decisões da Igreja e seus símbolos de fé.
Os princípios de interpretação de Westminster
Lembremos o
que os puritanos escreveram sobre esse assunto na Confissão de Fé de Westminster. O capítulo I da Confissão trata das
Escrituras, e neles, os puritanos expressaram suas convicções quanto à correta
interpretação das Escrituras. Em resumo, são estas:
1. Para evitar que Sua vontade e a verdade se perdessem pela
corrupção dos homens e a malícia de Satanás, Deus fê-la escrever nas Escrituras
Sagradas. A inspiração das Escrituras resulta no fato de que elas expressam
fielmente a vontade de Deus, a verdade divina.
Confissão de Westminster: “Ainda que a luz da natureza e as obras
da criação e da providência de tal modo manifestem a bondade, a sabedoria e o
poder de Deus, que os homens ficam inescusáveis, contudo não são suficientes
para dar aquele conhecimento de Deus e da sua vontade necessário para a
salvação; por isso foi o Senhor servido, em diversos tempos e diferentes modos,
revelar-se e declarar à sua Igreja aquela sua vontade; e depois, para melhor
preservação e propagação da verdade, para o mais seguro estabelecimento e
conforto da Igreja contra a corrupção da carne e malícia de Satanás e do mundo,
foi igualmente servido fazê-la escrever toda. Isto torna indispensável a
Escritura Sagrada, tendo cessado aqueles antigos modos de revelar Deus a sua
vontade ao seu povo” (CFW, I.1).
Referências bíblicas: Sl 19.1-4; Rm 1.32, e 2.1, e 1.19-20, e
2.14-15; 1Co 1.21, e 2.13-14; Hb 1.1-2; Lc 1.3-4; Rm 15.4; Mt 4.4, 7, 10; Is
8.20; 1Tm 3.15; 2Pe 1.19.
2. Temos a possibilidade de conhecermos o sentido das Escrituras,
sentido esse pretendido por Deus através do autor humano.
Confissão de Westminster: “Todo o conselho de Deus concernente a
todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do
homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e
claramente deduzido dela” (CFW, I.6)
Referências bíblicas: 2Tm
3.15-17; Gl 1.8; 2Ts 2.2; Jo 6.45; 1Co 2.9, 10, l2; 1Co 11.13-14.
3. O Espírito Santo garante a compreensão salvadora das coisas
reveladas na palavra de Deus, as Escrituras.
Confissão de Westminster: “À Escritura nada se acrescentará em
tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos
homens; reconhecemos, entretanto, ser necessária a íntima iluminação do
Espírito de Deus para a salvadora compreensão das coisas reveladas na palavra,
e que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da
Igreja, comum às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela
luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras gerais da palavra, que
sempre devem ser observadas” (CFW, I.6; ver Catecismo
Maior pergunta 4).
Referências bíblicas: 2Tm 3.15-17; Gl 1.8; 2Ts 2.2; Jo 6.45; 1Co
2.9,10,l2; 1Co 11.13-14.
4. O sentido das Escrituras é tão claramente exposto e explicado
que a suficiente compreensão das mesmas pode ser alcançada através dos meios
ordinários (pregação, leitura e oração).
Confissão de Westminster: “Na Escritura não são todas as coisas
igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos; contudo, as
coisas que precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a salvação, em um
ou outro passo da Escritura são tão claramente expostas e explicadas, que não
só os doutos, mas ainda os indoutos, no devido uso dos meios ordinários, podem
alcançar uma suficiente compreensão delas” (CFW, I.7).
Referências bíblicas: 2Pe 3.16; Sl 119.105, 130; At 17.11.
5. Há somente um sentido verdadeiro e pleno em cada texto da
Escritura e não múltiplos sentidos, e esse sentido pode ser alcançado e
compreendido pela Igreja.
Confissão de Westminster: “A regra infalível de interpretação da
Escritura é a mesma Escritura; portanto, quando houver questão sobre o
verdadeiro e pleno sentido de qualquer texto da Escritura (sentido que não é
múltiplo, mas único), esse texto pode ser estudado e compreendido por outros
textos que falem mais claramente” (CFW, I.9).
Referências bíblicas: At 15.15; Jo 5.46; 2Pe 1.20-21.
6. Exatamente porque as Escrituras não têm sentidos múltiplos é
que as mesmas são o supremo tribunal em controvérsias religiosas, aos quais a
Igreja sempre deve apelar.
Confissão de Westminster: “O Antigo Testamento em hebraico (língua
vulgar do antigo povo de Deus) e o Novo Testamento em grego (a língua mais
geralmente conhecida entre as nações no tempo em que ele foi escrito), sendo
inspirados imediatamente por Deus e pelo seu singular cuidado e providência
conservados puros em todos os séculos, são por isso autênticos e assim em todas
as controvérsias religiosas a Igreja deve apelar para eles como para um supremo
tribunal” (CFW, I.8; cf. como exemplo XXIX.6).
Referências bíblicas: Mt 5.18; Is 8.20; 2Tm 3.14-15; 1Co 14; 6, 9, 11, 12, 24, 27-28; Cl 3.16;
Rm 15.4.
Confissão de Westminster: “A luz da natureza mostra que há um Deus
que tem domínio e soberania sobre tudo, que é bom e faz bem a todos, e que,
portanto, deve ser temido, amado, louvado, invocado, crido e servido de todo o
coração, de toda a alma e de toda a força; mas o modo aceitável de adorar o verdadeiro
Deus é instituído por ele mesmo e tão limitado pela sua vontade revelada, que
não deve ser adorado segundo as imaginações e invenções dos homens ou sugestões
de Satanás nem sob qualquer representação visível ou de qualquer outro modo não
prescrito nas Santas Escrituras” (CFW, XXI,1).
Referências bíblicas: Rm 1.20; Sl 119.68, e 31.33; At 14.17; Dt
12.32; Mt 15.9, e 4.9, 10; Jo
4.3, 24; Ex 20.4-6.
8. Apesar de os salvos serem humanos e pecadores, recebem de Deus
o que é necessário para compreenderem as coisas de Deus para a salvação.
Confissão de Westminster: “Todos aqueles que Deus predestinou para
a vida, e só esses, é ele servido, no tempo por ele determinado e aceito,
chamar eficazmente pela sua palavra e pelo seu Espírito, tirando-os por Jesus
Cristo daquele estado de pecado e morte em que estão por natureza, e
transpondo-os para a graça e salvação. Isto ele o faz, iluminando os seus
entendimentos espiritualmente a fim de compreenderem as coisas de Deus para a
salvação, tirando-lhes os seus corações de pedra e dando lhes corações de
carne, renovando as suas vontades e determinando-as pela sua onipotência para
aquilo que é bom e atraindo-os eficazmente a Jesus Cristo, mas de maneira que
eles vêm mui livremente, sendo para isso dispostos pela sua graça” (CFW X,1;
ver também o Catecismo Maior, pergunta 157).
Referências bíblicas: Jo
15.16; At 13.48; Rm 8.28-30 e 11.7; Ef. 1.5,10; 1Tes 5.9; 2Ts 2.13-14; 2Co
3.3,6; Tg 1.18; 1Co 2.12; Rm 5.2; 2Tm 1.9-10; At 26.18; 1Co 2.10,12; Ef
1.17-18; 2Co 4.6; Ez 36.26, e 11.19; Dt 30.6; Jo 3.5; Gl 6.15; Tt 3.5; 1Pe
1.23; Jo 6.44-45; Sl 90.3; Jo 9.3; Jô 6.37; Mt 11.28; Ap 22.17.
Considerações finais
Esse
pequeno resumo dos princípios de interpretação bíblica que se encontram na Confissão de Fé de Westminster serve
para mostrar que os puritanos, seguindo a linha de interpretação dos
reformadores, entenderam que a única maneira de interpretar as Escrituras sem
violar a sua integridade, propósito e escopo, era procurar entender o sentido
que os autores humanos haviam pretendido transmitir. Reconheciam que essa nem
sempre era uma tarefa fácil, mas confiavam que, com a ajuda da ação iluminadora
do Espírito, do conhecimento das línguas originais e do contexto histórico,
poderiam alcançar esse sentido. A teologia que temos na Confissão de Fé de Westminster é o resultado do emprego sistemático
dessa hermenêutica.
Observação: A Confissão de
Westminster e o Catecismo de
Westminster estão integralmente disponíveis para pesquisa no site
www.icp.com.br
0 comentários:
Postar um comentário