Por Gilson Barbosa
O Didaquê é um dos antigos documentos que fazem parte dos tesouros da igreja cristã. É conhecido, popularmente, como um catecismo da igreja e um manual de caráter prático. Retrata as origens e o progresso do cristianismo pós-ressurreição de Cristo e a expressão é de origem grega didakhê, cujo significado é “ensino”. Para os estudiosos, o documento é comumente denominado como “O ensino dos doze apóstolos”. No entanto, é consenso geral não haver certezas quanto à autoria coletiva e apostólica do mesmo, pois, acredita-se que o conteúdo escriturístico recebeu inserções de várias fontes orais ou escritas.
O Didaquê, os protestantes e o cânon bíblico
A importância do ensino contido no Didaquê é uma verdade inegável. Para os protestantes, de maneira geral, o documento não é divinamente inspirado nem faz parte das Escrituras Sagradas, apesar de haver menção em Atos 2.42 sobre os “ensinos dos apóstolos”, por este conter muitas instruções práticas salutares aos cristãos primitivos. O historiador eclesiástico, Eusébio de Cesaréia, em sua “História Eclesiástica”, chegou a afirmar que este documento deveria ser considerado como livro espúrio (nothói).
De fato, apesar do acentuado diálogo com os textos bíblicos, o didaquê não deve ser considerado canônico, pois entendemos que em termos de regra de fé e prática a Bíblia contém subsídios eficientes e suficientes para tal escopo. O documento pode ser classificado, portanto, como extracanônico. Sendo assim, o bom sendo indica que exercer a fé nesta e outras obras, paralelas às Escrituras, é incorrer em riscos desnecessários. Mas, sem dúvida alguma, é imprescindível conhecê-lo e tê-lo em alta consideração.
A cópia do manuscrito
O manuscrito completo foi encontrado por um estudioso chamado Fhilotheos Bryennios, em 1873, numa biblioteca, em Constantinopla. Este manuscrito encontrado por Bryennios data de 1056. Em 1883, Bryennios o publicou com o título “Doutrina dos doze apóstolos”.
Texto original
O manuscrito descoberto em 1056, anterior à redescoberta em 1873 por Bryennios, não era original. Ele fora copiado, por certo rabino, do texto original. Isso gerou dúvidas quanto à fiel datação do manuscrito original.
Dado que este documento fora recebendo inserções, não há como fixar uma data para sua composição, mas os especialistas estabelecem datas que se concentram entre os anos 70 até 150 d.C. Portanto, entre final do século I e início ou metade do século II.
Temos informações a propósito do Didaquê em outros escritos importantes que nos dão parâmetro para estabelecer a data do documento original. Dois destes escritos são a “Epístola de Barnabé” e o “Pastor de Hermas”. Estes, por seu turno, datam da primeira metade do século II, o que nos leva a concluir que o manuscrito original não ultrapassa a metade do século II.
Proveniência do Didaquê
Dois locais disputam a composição do Didaquê: Egito e da Síria. Porém, existem no mínimo três argumentos insinuantes e substanciais de que o documento foi redigido na Síria – mais precisamente em Antioquia. São eles:
Argumento ministerial
Neste âmbito é traçado um paralelo entre Atos dos Apóstolos 13.1 e Didaquê 11. Estes tratam respectivamente dos ministérios de apóstolos, profetas e doutores. O argumento fundamenta-se no fato de Antioquia ter ficado conhecida pelos intelectuais talentosos que nela residiam, o que não se pode dizer do egípcio no que tange a erudição cristã.
Argumento topográfico
No Didaquê capítulo 9.4 há uma menção a um “fragmento disperso sobre os montes”. Acredita-se, a partir da análise geográfica, que esta menção embasa mais a proveniência siríaca do que a egípcia.
Argumento escriturístico
O autor do Didaquê cita recorrentemente o Evangelho de Mateus. Segundo consta, este evangelho era o de maior circulação em Antioquia.
A necessidade do Didaquê
A igreja primitiva anelava pela fé viva em Cristo, pelo desenvolvimento fraternal, pelo poder do Espírito Santo, pela obediência às doutrinas esposadas pelos apóstolos, aguardavam a vinda de Cristo, etc. O cristianismo era vivido de forma sincera, simples, útil e prática. A circulação, entre as igrejas, dos textos escriturísticos neotestamentários, acontecia de forma lenta e precária e a fonte imediata era os livros do Antigo Testamento.
Quando surgiam certas dúvidas entre os cristãos dos primeiros séculos, bastava aos crentes lerem os “Evangelhos”, os “Atos” e as “Cartas”, pois nestes escritos é notório entre os apóstolos preocupações extensivas aos mais variados e diverso assuntos: doutrinas, litúrgicos, morais, sociais, etc. Mas isto era apenas o início da Igreja cristã e questões novas iriam exigir posicionamentos da igreja. A expansão do cristianismo, a conversão de pagãos, a morte dos apóstolos, as introduções de heresias, o ambiente cultural, enfim, este conjunto de acontecimentos demandavam que novas orientações, obviamente pautadas nas Escrituras Sagradas, fossem atualizadas, e para isso, a seu tempo, contribuiu o Didaquê.
Panorama do Didaquê
Em posse do documento, que pretendo publicar integralmente em outra postagem, o leitor observará que ele é composto de dezesseis capítulos. Sua divisão, para efeitos didáticos, pode ser feita em quatro partes.
DIVISÃO TEXTUAL | CAPITULAÇÃO |
Resumo de ensinos morais | 1 ao 6 |
Normas públicas quanto ao culto | 7 ao 10 |
Instruções e serviços eclesiais | 11 ao 15 |
Admoestação final | 16 |
Os temas preliminares do Didaquê
O Didaquê objetivava prover diretrizes básicas tanto aos neoconversos quanto aos cristãos que estavam há tempos na igreja. Como o documento se dedica a instrução, isso nos possibilita conhecer a prática dos cristãos, seus costumes e como cada questão era tratada em seu contexto histórico. São pontos cruciais:
ASPECTO | FATORES |
doutrinário | o ministério cristão, o discipulado, a igreja e as práticas gentílicas |
social | a sociedade cristã, a igreja e os pobres, os escravos e as crianças |
litúrgico | o batismo, o culto cristão, a santa ceia e a oração |
Convido os leitores deste blog a acompanhar a segunda parte deste tema, onde pretendo compartilhar o texto ipsis litteris do Didaquê, acrescido de comentários explicativos visando a sua melhor contextualização e compreensão.
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