quarta-feira, 16 de março de 2011

A EXPECTATIVA DO FIM NA HISTÓRIA DO CRISTIANISMO (Parte I)

Por Alderi Souza de Matos*

Desde o seu início, o movimento cristão tem se caracterizado por um nítido elemento apocalíptico. O cristianismo tem uma concepção linear da história, apontando para um fim que marcará a consumação de todas as coisas. Esse elemento estava fortemente presente no judaísmo pré-cristão, especialmente nos profetas e salmos do Antigo Testamento, com a sua esperança messiânica e a sua mensagem acerca do Dia do Senhor, a intervenção de Deus na história para libertar Israel dos seus inimigos e instaurar uma era de justiça e paz. Jesus manteve essa ênfase escatológica ao fazer da vinda iminente do reino de Deus a sua mensagem principal. Os apóstolos, nos escritos que vieram a compor o Novo Testamento, preservaram a convicção da igreja primitiva de que os cristãos vivem entre dois tempos, entre o “” e o “ainda não”. O Filho de Deus veio ao mundo, morreu e ressuscitou; ao mesmo tempo, Ele ainda voltará para consumar todo o propósito de Deus em relação à humanidade. O reino de Deus está presente, mas ainda não alcançou a sua plenitude. Essa permanente tensão tem feito com que os cristãos, a cada geração, se preocupem, com maior ou menor intensidade, com as questões referentes ao fim dos tempos.

Este artigo procura sintetizar algumas das principais atitudes dos cristãos ao longo da história em relação à volta de Cristo e aos acontecimentos a ela relacionados, entre os quais o milênio, isto é, a noção de que Cristo, na sua volta, irá instaurar um reino literal sobre a terra, durante mil anos. A principal fonte utilizada para este retrospecto foi a revista Christian History, em um número sobre esse tema publicado em 1999.

Os primeiros séculos
O período apostólico foi caracterizado por uma intensa esperança escatológica, como se pode constatar nas epístolas paulinas e gerais e no livro do Apocalipse. Todavia, ao contrário da opinião da crítica bíblica moderna, a demora ou o adiamento da parousia (termo técnico para a “presençaou segunda vinda de Cristo) não parece ter causado grande comoção entre os primeiros cristãos. Eles simplesmente passaram a interpretar os eventos de outra maneira. Com o tempo surgiu o entendimento de que a volta de Cristo poderia não ser um evento iminente e sim muito distante no futuro, e aqueles que afirmavam o contrário foram encarados com desconfiança.

Muitos dos primeiros cristãos parecem ter entendido a ressurreição de Cristo como o início do milênio. Aliás, as preocupações milenaristas ou quiliásticas (do grego chilioi = “mil”) foram generalizadas nos primeiros séculos da igreja. Papias (c.60-120 d.C.), um dos chamados “pais apostólicos”, foi o primeiro autor subseqüente ao Novo Testamento a descrever o milênio, assim como também o fez o gnóstico Cerinto (c.100 d.C.), embora a sua descrição dos prazeres físicos do milênio tenha escandalizado os ortodoxos. Em sua obra Diálogo com Trifo, o Judeu, o apologista Justino Mártir (c.100-165) foi um passo além de Papias ao afirmar que o milênio teria início após a vinda do Anticristo e a segunda vinda de Cristo. Os fiéis mortos iriam ressuscitar e reinar com Cristo por mil anos na nova Jerusalém. Assim sendo, ele é considerado por muitos o primeiro “pré-milenista”, ou seja, defensor da noção de que a volta de Cristo precede o milênio. Justino foi seguido nessa opinião pelo célebre bispo Irineu de Lião (c.130-c.200), um discípulo de Papias, em sua monumental obra apologética Contra as Heresias, dirigida contra os gnósticos.

Justino e Irineu viram a segunda vinda de Cristo e o milênio como eventos distantes no tempo. Todavia, no final do segundo século alguns cristãos começaram a ver sinais de que o milênio era iminente, como foi o caso dos montanistas. Por volta do ano 172, Montano e suas auxiliares Priscila e Maximila começaram a afirmar que o milênio havia começado e que dentro em breve Jerusalém iria descer nas proximidades da Frígia, na Ásia Menor. Eles também disseram que Deus lhes dera autoridade sobre a igreja e que rejeitar os seus pronunciamentos era blasfemar contra o Espírito Santo. No início do terceiro século, Hipólito de Roma predisse que Cristo estabeleceria o milênio no ano 500, sendo um dos primeiros escritores antigos a fixarem uma data para a segunda vinda. Ele fez esse cálculo no seu comentário pioneiro sobre o livro de Daniel, partindo da premissa de que Cristo nascera 5.500 anos após a criação do mundo. Assim, a segunda vinda e o início do milênio se dariam 500 depois e o mundo terminaria no ano 7000, uma idéia comum naqueles dias.

Curiosamente, o objetivo de Hipólito com essa data distante foi atenuar as expectativas de muitos de seus contemporâneos. Ele falou de um líder da igreja síria que havia levado o seu povo ao deserto para aguardar a segunda vinda. Outro líder, do Ponto, no norte da Ásia Menor, havia predito que Cristo voltaria dentro de um ano. Quando isso não aconteceu, os seus seguidores ficaram arrasados. Muitos abandonaram a : “As virgens se casaram; os homens se retiraram para as suas fazendas e aqueles que haviam imprudentemente vendido as suas possessões mais tarde foram vistos mendigando”.

Outra tentativa de atenuar as expectativas milenistas foi feita pelo grande teólogo do terceiro século Orígenes (c.185-c.254). Sua interpretação bíblica alegórica, não-literal, deu mais ênfase às ações praticadas pelos cristãos do que à cronologia dos eventos escatológicos. Algumas décadas mais tarde, quando a última perseguição imperial se abateu sobre a igreja (303-311), houve a especulação de que a temida tribulação podia ter chegado, sendo o imperador Diocleciano e o seu vice Galério a primeira e a segunda bestas de Apocalipse 13. Logo depois, com a vitória de Constantino e a completa inversão da situação da igreja, muitos tiveram a impressão de que o milênio finalmente havia chegado.

A contribuição de Agostinho
Inicialmente, o grande bispo de Hipona havia abraçado a posição milenarista da maioria dos antigos cristãos. Todavia, na sua obra mais importante, A Cidade de Deus (ano 427), ele passou a entender os mil anos de Apocalipse 20 como o período que teve início com a encarnação de Cristo, ou seja, a era da igreja cristã. Essa nova posição, muitas vezes chamada de “amilenismo” (isto é, a negação de um milênio literal), tornou-se a concepção predominante entre os cristãos ocidentais, inclusive os reformadores protestantes, por quase mil e quinhentos anos. Na era da igreja, os santos reinam com Cristo, embora não de modo tão pleno como acontecerá no reino eterno de Deus.

As razões apontadas para essa mudança de pensamento são várias. Entre elas está o fato de que, à medida que os anos passaram, Agostinho concentrou-se cada vez mais nas realidades celestiais, tanto presentes quanto futuras. A terra e as realidades históricas tornaram-se cada vez menos importantes para ele. A idéia de um milênio literal na terra após a volta de Cristo parecia-lhe demasiado grosseira; tudo o que importava era a cidade de Deus. Os cristãos são peregrinos cujo verdadeiro lar é a pacífica cidade que está além da história humana. “Sem essa esperança”, disse ele, “a presente realidade é uma falsa felicidade, ela é de fato uma completa miséria.” Portanto, a primeira vinda de Cristo deu início aos últimos tempos da história humana. A consumação está além deste mundo, quando Cristo reinar plenamente no meio do seu povo restaurado, quando tiverem ficado para trás as lutas e ambigüidades da era presente.

O apocaliptismo medieval
Curiosamente, a passagem do ano 1000 teve pouco significado apocalíptico para as pessoas da Idade Média, porque o cálculo dos anos a partir do nascimento de Cristo ainda era relativamente recente. Todavia, isso não significa que o cristianismo medieval estivesse pouco interessado em especulações sobre o final dos tempos. Por volta de 950, um monge chamado Adso escreveu um tratado sobre o Anticristo que popularizou a idéia do “último imperador mundial”, o grande monarca que precederia a vinda do Anticristo. Um elemento que alimentou o apocaliptismo desse período foi a corrupção da igreja e a inércia dos seus líderes, situação que suscitou protestos como o da abadessa alemã Hildegarde de Bingen (1098-1179). Todavia, o mais famoso escritor sobre temas apocalípticos naquela época foi o abade Joaquim de Fiore (c.1135-1202), outro proponente da reforma da igreja. Ele especulou que, logo após o ano 1200, duas forças anticristãs, possivelmente muçulmanos e hereges, iriam atacar, derrotar e perseguir intensamente os cristãos. Assim purificados, um papa reformador e as ordens monásticas criariam um mundo mais santo no qual as pessoas alcançariam uma compreensão inigualável do sentido oculto das Escrituras. Por um período indeterminado, os cristãos dominariam o mundo em um clima de paz.

Os eventos não se harmonizaram com essas previsões otimistas. Por vários séculos, os imperadores continuaram a entrar em choque com os papas, e nem uns nem outros promoveram as reformas que a igreja reclamava. Essa situação, aliada a outras realidades negativas na sociedade mais ampla, continuaram a inspirar não só a literatura apocalíptica, mas movimentos dessa natureza, como o dos taboritas, seguidores extremados de João Hus, e o do frade dominicano Jerônimo Savonarola (1452-1498). Um fato pouco conhecido são as motivações escatológicas por trás das viagens exploratórias de Cristóvão Colombo (1451-1506). O famoso navegador era assíduo estudioso da Bíblia e estava familiarizado com a escatologia de Joaquim de Fiore. Ele preparou o chamado Livro de Profecias, uma coleção de predições sobre o fim do mundo e o retorno de Cristo, no qual procurou demonstrar que as suas viagens serviam a um propósito divino. A descoberta de um caminho mais curto para o Oriente não só proporcionaria os fundos para a conquista de Jerusalém das mãos dos infiéis, mas possibilitaria a pregação do evangelho a todas as nações, dois requisitos para a volta de Cristo.

*Alderi Souza de Matos, ministro presbiteriano, é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil.
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