terça-feira, 29 de março de 2011

RAZÃO VERSUS REVELAÇÃO

*Por José Gonçalves
“Depois de muito tempo, tendo-se tornado a navegação perigosa, e já passado o tempo do Dia do Jejum, admoestava-os Paulo, dizendo- lhes: Senhores, vejo que a viagem vai ser trabalhosa, com dano e muito prejuízo, não só da carga e do navio, mas também da nossa vida. Mas o centurião dava mais crédito ao piloto e ao mestre do navio do que ao que Paulo dizia” (At 27.9-11).

O conflito entre fé e razão está presente desde muito cedo na história da igreja cristã. De fato parece quase impossível, pelo menos para muitos cristãos, a idéia de reconciliar a revelação com a razão. A idéia que se têm, para parafrasear o teólogo anglicano Alan Jones, é que “quem pensa não tem fé, e quem tem fé não pensa”. Isso parece paradoxal, pois, sem dúvida os maiores pensadores da humanidade são encontrados dentro do universo cristão.
No texto ora citado vemos esse conflito em evidência. Por um lado temos o apóstolo Paulo valendo-se de uma revelação divina sobre os perigos iminentes que o navio no qual ele era transportado corria. Quando o apóstolo disse vejo que a viagem vai ser trabalhosa, não há dúvida que ele se referia a uma revelação de Deus sobre a viagem da qual era participante. Em palavras mais simples, Paulo teve uma revelação de Deus sobre o que poderia acontecer naquela viagem. Por outro lado, o texto sagrado mostra que o “centurião dava mais credito ao piloto e ao mestre do navio do que ao que Paulo dizia”.  O centurião preferiu crer mais na técnica dos marinheiros do que em Paulo. Em outras palavras, o centurião preferiu acreditar mais na razão que na revelação. No período pós-apostólico o debate entre fé e razão cresceu em amplitude.
A palavra razão nesse período soava como sendo um sinônimo de filosofia grega. Todavia para muitos pais apostólicos essa aproximação entre Atenas e Jerusalém cheirava a apostasia. Tertuliano, por exemplo, que foi bispo de Catargo, perguntava em tom de denúncia: “que relação há entre Atenas e Jerusalém? Que acordo há entre a Academia e a Igreja?”. Para ele a fé cristã e a filosofia grega eram irreconciliáveis. Por outro lado, Justino Mártir, um ex-discípulo de Platão, acreditava que era sim possível esse diálogo. Em sua apologia ele escreveu: “Eu sou cristão, glorio-me disso e, confesso, desejo fazer-me reconhecer como tal. A doutrina de Platão não é incompatível com a de Cristo, mas não se casa perfeitamente com ela, não mais do que a dos outros, dos estóicos, do poetas e dos escritores.
Cada um deles viu, do Verbo divino que estava disseminado pelo mundo, aquilo que estava em relação com a sua natureza, chegando desse modo a expressar uma verdade parcial. Mas, à medida que se contradizem nos pontos fundamentais, mostram que não estão de posse de uma ciência infalível e de um conhecimento irrefutável. Tudo aquilo que ensinaram com veracidade pertence a nós cristãos”.
São dois exemplos que mostram pensamentos diametralmente opostos. No período medieval esse debate é retomado com força, e dois expoentes do pensamento ocidental vão se sobressair. São eles: Agostinho e Tomás de Aquino. Agostinho viveu no início da Idade Média, enquanto Aquino no final. Se por um lado Agostinho, que foi bispo de Hipona, vai recorrer ao pensamento platônico para fundamentar seus argumentos teológicos, por outro Aquino irá cristianizar os ensinos de Aristóteles.
Ao recorrer à filosofia aristotélica para fundamentar seu raciocínio Aquino, por exemplo, dizia que “os argumentos não devem ser aceitos pela autoridade de quem diz, mas pela validade do que se diz”. Duas perguntas devem ser respondidas depois do que se acabou de narrar. É possível compatibilizar a fé com a razão? Qual o perigo de se formar um abismo entre ambas? Em primeiro lugar acredito que hoje há uma grande confusão em torno desses temas. O problema está em se confundir razão com racionalismo. O primeiro termo diz respeito a nossa capacidade de julgar, de pensar, de argumentar, etc. Nesse sentido não há como nos desfazermos da razão, simplesmente pela simples razão de sermos seres racionais. Fomos feitos para pensar. René Descartes dizia na introdução de seu Discurso do Método que todos nós nascemos com o bom senso. Por outro lado, o racionalismo é um termo aplicado à escola de pensamento que diz não haver nenhum conhecimento válido fora da razão humana. Em palavras mais simples, aquilo que não puder ser explicado de forma racional deve ser rejeitado. Nesse caso a revelação, que se encontra nos domínios da fé não pode ser aceita como uma forma de conhecimento válido. Essa forma de pensar, que é filha da modernidade, é de fato a mãe do materialismo e ateísmo. Quando se privilegia a revelação em detrimento da razão, cria-se um campo propício para o surgimento de práticas incompatíveis com o cristianismo bíblico. Por exemplo, o livro Libertação da Teologia, escrita por um autor neopentecostal, diz: “Todas as formas e todos os ramos da Teologia são fúteis. Não passam de emaranhados de idéias que nada dizem ao inculto; confundem os simples e iludem os sábios. Nada acrescentam à fé; nada fazem pelo homem senão talvez aumentar sua capacidade de discutir e discordar.”
Que princípio irá nortear uma igreja que acredita que a razão, que aqui é entendido como sendo o pensamento teológico sistemático, é fútil? Não irá essa igreja ter um conjunto de crenças práticas fora do modelo bíblico? Essa forma de pensar é muito comum nos grupos restauracionistas. Hannah Whitall Smith, por exemplo, em seu livro “O Segredo Cristão de Uma Vida Feliz” escrito em 1870, acreditava que “o problema com a maior parte da religião de hoje em dia é sua extrema complexidade”, acrescentando que a verdadeira religião evita “dificuldades teológicas [e] dilemas doutrinários...Nenhum treinamento teológico e nenhuma visão teológica em particular são necessárias”. Em segundo lugar a confusão é gerada por conta daquilo que em filosofia se denomina de “erro de categoria”. A fé e a razão não são excludentes, mas sem duvidas pertencem a categorias diferentes. Como explicar, por exemplo, a cura de um paciente terminal de câncer recorrendo a argumentos racionais? A velha máxima de que milagres não se explicam ainda é válida. De fato Paulo diz isso com outras palavras: “Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente” (I Co 2.14).
Quando nos conscientizarmos que somos formados por Deus (seres espirituais) tanto para crer (revelação) como para pensar (razão), então cessará o conflito. A propósito, não tenho a menor dúvida de que se o comandante do navio tivesse tido o bom senso de dar ouvidos ao que Paulo dizia o naufrágio teria sido evitado.
*José Gonçalves, é ministro do evangelho em Teresina, PI, escritor, filósofo e membro da Comissão de Apologia da CGADB
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