terça-feira, 29 de março de 2011

A FORMAÇÃO DA TEOLOGIA PENTECOSTAL NO BRASIL

Por Silas Daniel*
A importância dos missionários escandinavos e norte-americanos na formação da identidade teológica da Assembléia de Deus brasileira
Apesar das constantes incidências de modismos teológicos no cenário evangélico brasileiro, a Assembléia de Deus é hoje uma das igrejas com maior solidez bíblica doutrinária em nosso país. Isso se deve a anos de formação de sua identidade teológica, sob a influência direta dos missionários escandinavos e norte-americanos. Como se deu essa influência?
Para entendermos isso, acredito que dois pontos devem ser analisados. Primeiro: Quem exerceu maior influência? Os missionários escandinavos ou os norte-americanos? Segundo: Havia alguma divergência doutrinária entre a Teologia pentecostal escandinava e a norte-americana?
QUEM EXERCEU MAIOR INFLUÊNCIA?
Como sabemos, a Assembléia de Deus no Brasil foi fundada por missionários escandinavos, porém sua Teologia sofreu igualmente influência da igreja pentecostal escandinava e das Assembléias de Deus norte-americanas. A diferença é quanto ao tempo de influência dos dois grupos. O primeiro exerceu sua influência teológica nas primeiras cinco décadas do Movimento Pentecostal brasileiro. Os norte-americanos estão exercendo sua influência teológica no Brasil pentecostal já há 40 anos.
Se na liturgia e em alguns costumes podemos afirmar que ainda somos herdeiros dos primeiros missionários suecos (se bem que, nos últimos 15 anos, a influência norte-americana na nossa liturgia e costumes aumentou), pode-se dizer que teologicamente fomos influenciados mais pelos missionários norte-americanos do que pelos escandinavos. Excetuando a influência na Assembléia de Deus do missionário escandinavo Eurico Bergstén, falecido em 1999, são os norte-americanos que mais influenciaram a Teologia Pentecostal brasileira na quatro últimas décadas.
Ao lermos a história da Assembléia de Deus brasileira em seus primeiros anos, percebemos que, da década de 10 até os anos 40, os missionários suecos eram soberanos na orientação doutrinária. Nos primeiros anos, a voz da Teologia assembleiana eram os artigos dos suecos nos jornais Boa Semente, Som Alegre e Mensageiro da Paz, e na série Lições Bíblicas, com comentários exclusivamente dos missionários escandinavos nas primeiras décadas. Há artigos de brasileiros nesses periódicos, mas só eram publicados aqueles que passavam pelo crivo teológico dos missionários escandinavos. Além disso, os artigos de articulistas norte-americanos ou britânicos (notadamente Donald Gee, cujos estudos sobre dons espirituais foram preciosos para a nascente igreja no Brasil) eram escolhidos e traduzidos pelos missionários suecos antes de serem publicados nos periódicos.
Um detalhe dos anos 10, 20 e 30 é que havia certa igualdade entre os missionários escandinavos quanto à influência teológica. Gunnar Vingren, Samuel Nyström, Nils Kastberg, Otto Nelson, Nels Nelson e Joel Carlson se dividiam nessa tarefa, ora por meio de artigos, ora pelas ministrações de estudos bíblicos nas igrejas sob sua responsabilidade. Porém, de meados dos 30 até o início dos 40 (isto é, depois da partida de Vingren, ocorrida em 1932), o missionário Samuel Nyström passou a se destacar como o grande nome da Teologia Pentecostal no Brasil. Em muitos casos, questões doutrinárias eram dirimidas, até em reuniões de Convenção Geral das Assembléias de Deus, depois de ser ouvido Nyström.
Nyström foi o quarto missionário escandinavo pentecostal a aportar em solo brasileiro. Conhecido como o grande pregador e ensinador, sua vinda foi uma grande conquista para a obra no Brasil. Além do sueco, sua língua natal, falava o português e o inglês fluentemente, e tinha noções de grego e hebraico. Antes de liderar a Assembléia de Deus em São Cristóvão, no Rio, ele pastoreou a igreja-mãe em Belém do Pará, tendo inaugurado o primeiro templo assembleiano na capital paraense. Foi ele quem deu início ao movimento beneficente em favor das viúvas de pastores e é até hoje o líder que mais vezes foi eleito presidente da CGADB. Foram nove vezes (1933, 1934, 1936, 1938, 1939, 1941, 1943, 1946 e 1948). Sua influência era tão grande que a vinda de Nyström para a cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, substituindo o pioneiro Gunnar Vingren, fez com que a Assembléia de Deus de São Cristóvão se tornasse uma espécie de centro da obra no Brasil, o que durou por muito tempo.
Lendo as páginas do jornal Mensageiro da Paz no final dos anos 30 e início dos 40, vemos que o nome de Nyström era quase onipresente nas escolas bíblicas de obreiros nos país. Intensamente requisitado, viajava o Brasil inteiro para ministrar estudos bíblicos concorridos, especialmente sobre Dispensacionalismo, os efeitos da obra de Cristo, o Corpo de Cristo e doutrinas bíblicas fundamentais. Nessa época, devido ao estrondoso sucesso de seus estudos, um deles virou livro, publicado pela CPAD: Jesus Cristo, Nossa Glória. Esta obra traz uma exposição sobre as doutrinas da Redenção, Santificação e Justificação. É impressionante o fato de que tenha vendido cerca de 5 mil exemplares em sua primeira tiragem nos anos 30, em uma época em que boa parte dos assembleianos não era afeita à leitura. A obra só seria reeditada nos anos 80.
Porém, a partir especialmente do final dos anos 30, começaram a aportar no país missionários da Assembléia de Deus dos EUA que, aos poucos, se notabilizaram na orientação teológica dos primeiros obreiros brasileiros.
No final dos anos 40 e início dos 50, despontam notadamente nas escolas bíblicas pelo país os nomes do missionários norte-americanos. Podemos dizer que inicia aqui o processo de cristalização da Teologia Pentecostal no Brasil, pois só com os missionários norte-americanos houve uma sistematização maior das doutrinas bíblicas na Assembléia de Deus.
Pesquisando as páginas do Mensageiro da Paz nos anos 40 e 50, notamos que os destaques nas escolas bíblicas agora eram os missionários norte-americanos Lawrence Olson, Leonard Pettersen, Teodoro Stohr e John Peter Kolenda, mais conhecido como JP Kolenda. Nesse período, do lado escandinavo, impõe-se apenas os nomes dos missionários Nels Nelson e Lars Erik Bergstén, e que aportou em plagas brasileiras no final da década do 40. Nesse período, Nyström já saíra de cena, de volta à Suécia.
Nels Nelson era presença constante nas escolas bíblicas de obreiros pelo país, mas, sem dúvida, Bergstén foi muito mais influente na formação da Teologia Pentecostal. Enquanto Nelson ministrava mais sobre Prática e Teologia Pastoral, Bergstén era mais sistemático e seus estudos abordavam todas as doutrinas bíblicas. Isso não significa dizer que Bergstén era rebuscado em seu discurso. Uma de suas marcas era a simplicidade com que ele abordava os pontos doutrinários, além do largo uso de citações bíblicas para explicar e reforçar o que estava ensinando. Sua biblicidade e a forma apaixonada como falava sobre a necessidade de os obreiros amarem a Bíblia para crescerem espiritualmente foram imensamente importantes para formações de gerações de obreiros assembleianos.
Vale lembrar ainda que se Nels Nelson não exercia uma grande influência teológica na Assembléia de Deus brasileira, tal qual Bergstén, sua influência como líder, porém, era muito forte. Nels Nelson foi o último grande líder sueco da Assembléia de Deus brasileira. Assim, Nelson e Bergstén foram os nomes que ainda mantiveram a influência escandinava em nosso país.
Nelson faleceu nos anos 60. A partir daí, a liderança da Assembléia de Deus brasileira tornou-se quase que totalmente autóctone. Excetuando os missionários Nils Taranger, no Rio Grande do Sul (falecido nos anos 90), Gustavo Arn Johansson, em Maceió (que liderou de 1963-1965) e alguns missionários noruegueses no Sul, não havia mais missionários escandinavos liderando igrejas. É verdade que alguns missionários norte-americanos chegaram a liderar igrejas em nosso país, mas por pouco tempo e sem exercer influência na liderança nacional, como exerciam Nelson e os demais escandinavos antes dele. A influência norte-americana passou a ser mesmo só na área teológica.
No período pós Nels Nelson, Eurico Bergstén passou a ser a única referência teológica escandinava. E que influência! Basta lembrar que é, até hoje, o maior comentarista de Lições Bíblicas da história da Assembléia de Deus brasileira. Foram mais de 30 revistas de Escola Dominical escritas em quase 40 anos. Era quase uma revista por ano, todas abordando variadas doutrinas bíblicas. Até sua morte, em 1999, a presença de Bergstén era constante em estudos bíblicos e conferências pelo país. Ao lado de Lawrence Olson, Bergstén foi, consciente ou inconscientemente, um dos grandes moldadores da Teologia Pentecostal no Brasil.
Ao falarmos isso, é importante dizer que não estamos dizendo que havia uma relatividade entre missionários suecos e norte-americanos na formação teológica dos obreiros brasileiros. Apenas reconhecemos que, ao lermos a história da Assembléia de Deus brasileira, percebemos que é nítida a aceitação natural desses nomes, por parte dos obreiros brasileiros, como formadores de sua identidade teológica.
SISTEMATIZAÇÃO DA TEOLOGIA
É também a partir dos anos 50 que são traduzidos para o português, pelos missionários norte-americanos, muitos livros de cunho teológico pentecostal vindos da outra América e que por muito tempo se tornaram a referência teológica dos obreiros brasileiros, sem contar os bons livros produzidos pelos próprios missionários norte-americanos aqui no Brasil. Destaque para Conhecendo as doutrinas da Bíblia e Através da Bíblia, de Myer Pearlman, traduzidos por Lawrence Olson. Essas duas obras tiveram grande sucesso e aceitação, principalmente a primeira, que vendeu mais de 100 mil exemplares e foi, durante muito tempo, a Teologia Sistemática dos obreiros pentecostais brasileiros.
Olson ainda produziria clássicos como O Plano Divino Através dos Séculos, que vendeu mais de 100 mil exemplares. Esse livro popularizaria no Brasil o Dispensacionalismo, adotado pela maioria dos obreiros brasileiros até hoje. Quem não se lembra daquele quadro colorido e retangular que ilustrava a história da humanidade segundo a Bíblia, de antes da criação do mundo até o final dos tempos? O quadro O Plano Divino Através dos Séculos pode ser encontrado em muitas casas de obreiros pelo Brasil até hoje.
Outro importante nome, tanto na tradução de obras em inglês como na produção de livros teológicos, é Orland Spencer Boyer (também missionário dos EUA), que além de escrever livros inspirativos, produziu a série Espada Cortante, que marcou época, instruindo muitos.
Porém, o maior destaque, ao lado de Conhecendo as doutrinas da Bíblia, é de iniciativa escandinava. Uma série de estudos bíblicos de Eurico Bergstén, que por muito tempo serviram como livro-texto da Escola Teológica das Assembléia de Deus no Brasil (Esteadeb), foi transformada posteriormente em livro: Teologia Sistemática (CPAD). Está é a única obra de Teologia Sistemática pentecostal produzida pela Assembléia de Deus no Brasil até a presente data. Apesar de sintética, foi a mais aprofundada e sólida tentativa de organizar e sistematizar a Teologia pentecostal em um único compêndio.
Nos anos 90, a CPAD publicaria Teologia Sistemática, uma perspectiva pentecostal, editada por Stanley Horton (maior expoente da Teologia Pentecostal nos EUA) e escrita por 18 teólogos da Assembléia de Deus norte-americana. Em seguida também foi lançado Doutrinas Bíblicas, do teólogo William Menzies, também dos EUA. Porém, a de Bergstén e a editada por Horton são as grandes referências teológicas da Assembléia de Deus brasileira hoje. Depois dessas duas obras, a de Pearlman ficou um pouco esquecida.
Finalmente, completando a tríade literária que serve hoje de referência para a Teologia da Assembléia de Deus brasileira, foi lançada, também nos anos 90, a Bíblia de Estudo Pentecostal (CPAD), com quase um milhão de exemplares vendidos só no Brasil. As notas são de autoria do pastor Donald Stamps, missionário norte-americano em nossa país.
Mas, novas boas notícias chegarão em breve. Depois de 95 anos de Assembléia de Deus, a CPAD começa o projeto de elaboração da primeira Teologia Sistemática Pentecostal genuinamente brasileira, escrita por teólogos da Assembléia de Deus em nosso país. Desejamos uma boa recepção para essa obra!
INSTITUTOS BÍBLICOS
O passo mais significativo dos missionários norte-americanos para a formação teológica dos obreiros brasileiros foi, sem dúvida, a polêmica criação de institutos bíblicos. Polêmica por não ter sido aceita inicialmente pelo obreiros brasileiros, satisfeitos apenas com o modelo das escolas bíblicas de curta duração, implantado pelos suecos. Anuais, as escolas bíblicas de obreiros duravam de duas semanas a um mês, estudavam temas diferentes a cada ano e até hoje fazem parte da tradição assembleiana no Brasil.
A principal crítica que se fazia aos institutos bíblicos é a de que eram “fábricas de pastores”. Apesar de todas as críticas, os norte-americanos levaram adiante seu projeto. Em 1959, com o apoio de JP Kolenda, o jovem pastor João Kolenda Lemos e sua esposa, a missionária norte-americana Ruth Dorris Lemos, fundariam o Instituto Bíblico da Assembléia de Deus (Ibad) em Pindamonhangaba (SP). Em seguida, em 1962, Lawrence Olson funda o Instituto Bíblico Pentecostal (IBP) no Rio de Janeiro. Olson e Orland Boyer ainda municiaram os obreiros brasileiros com belas obras teológicas de suas lavras a partir desse período. Olson ainda tinha a seu favor o programa Voz da Assembléia de Deus, com mensagens bíblicas enriquecidas de informações e curiosidades que despertavam nos ouvintes o desejo de se aprofundarem no conhecimento bíblico.
Vale lembrar que porque esses dois institutos foram fundados sem o apoio da maioria dos obreiros brasileiros, isso fez deles um grande desafio. Foi só nos anos 70 que iniciou-se um processo de aceitação dos institutos. O Ibad e o IBP só foram reconhecidos oficialmente pela Convenção Geral das Assembléia de Deus no Brasil em 1973 e 1975, respectivamente. É nesse período que nascem várias outras escolas teológicas (em forma de instituto) fundadas por obreiros brasileiros, e a Escola de Ensino Teológico das Assembléias de Deus (Eetad), fundada pelo missionário norte-americano Bernhard Johnson, em Campinas (SP).
Hoje, vivemos uma conseqüência clara disso. É interessante notar que os grandes teólogos nacionais da Assembléia de Deus brasileira só começaram a despontar mais a partir dos anos 70. Não que antes dos anos 70 não tenham havido nomes de destaque na Teologia da Assembléia de Deus entre os nacionais. Basta lembrar que é nos anos 60 que começa a aparecer o pastor e teólogo Antonio Gilberto, que veio a notabilizar a partir de 1974, com a criação do Curso de Aperfeiçoamento de Escola Dominical (Caped). É dele muitos best-sellers, como o Manual de Escola Dominical, lançado em 1974 e que já vendeu cerca de 150 mil exemplares. E que dizer do pastor Estevam Ângelo de Souza? É também outro grande exemplo. Porém, notadamente, só a partir dos anos 70 é que o leque aumenta. Atualmente, há vários nomes, e isso tem muito a ver com a mudança de visão em relação à importância dos seminários e institutos bíblicos, ocorrida à pouco mais de 30 anos.
DIFERENÇAS ENTRE O ESTILO ESCANDINAVO E O NORTE-AMERICANO
Não há muita diferença entre a Teologia pentecostal escandinava e a norte-americana. A diferença está mesmo nos estilos do que no conteúdo. Os escandinavos preferiam mais o sistema de escolas bíblicas informais e anuais de curta duração (daí a inspiração para criar as tradicionais escolas bíblicas de obreiros no Brasil). Os norte-americanos preferiam os institutos bíblicos, com o ensino formal das Escrituras e cursos de longa duração como as igrejas evangélicas tradicionais já faziam há muito tempo. Nos EUA, era comum o obreiro, antes de ser ordenado ao ministério, passar, em média, quatro anos em um instituto bíblico. Já na Suécia, só havia, na época, as escolas bíblicas de verão em Nyem (cidade sueca), uma espécie de curso intensivo de três meses para missionários e obreiros. Os alunos recebiam certificados, mas o curso era mais informal. Porém, ninguém era ordenado ao ministério ou enviado ao campo missionário pela Igreja Filadélfia, liderada pelo pastor Lewi Pethrus, sem antes passar por esse curso.
Com exceção de Daniel Berg e Gunnar Vingren, que foram pioneiros e se filiaram à Igreja Filadélfia depois de iniciada a obra no Brasil, todos os outros missionários escandinavos que aportaram em nosso país passaram por esse curso. Berg não estudou Teologia formalmente. Vingren, antes de vir ao Brasil, fora ordenado pastor pela Convenção Batista dos Estados Unidos. Para isso, formou-se em Teologia em um instituto bíblico e estagiou pastoreando uma Igreja Batista Sueca nos EUA. Quando estava pleiteando ser enviado como missionário à Índia, foi batizado no Espírito Santo, encontrou-se com Berg e Deus mudou os seus planos. Ainda bem!
Devido às diferenças entre a preparação teológica dos missionários escandinavos e norte-americanos, o estilo de ensino adotado por eles no Brasil era diferente. Analisando, por exemplo, os artigos doutrinários de um e de outro grupo no jornal Mensageiro da Paz, notamos que os suecos eram mais práticos, enquanto os norte-americanos eram mais sistemáticos. E, ao que parece, os obreiros brasileiros gostavam mais da simplicidade escandinava do que do estilo norte-americano. Só a partir dos anos 50 é que os brasileiros passaram a simpatizar mais com os doutrinadores norte-americanos, especialmente pelas ministrações bíblicas saborosas de nomes como Olson, JP, Stohr e Pettersen.
Outro detalhe: tanto os escandinavos quanto os norte-americanos aplicavam bem a hermenêutica, mas os norte-americanos eram um pouco mais voltados a exegese de textos bíblicos. O único missionário escandinavo que se aplicava no uso da exegese era Samuel Nyström. Aliás, Nyström era considerado pelos brasileiros como “o maior ensinador das Escrituras” no nascente Movimento Pentecostal em nosso país.
Interessante que os missionários escandinavos não ensinavam o Dispensacionalismo, que era a “moda” teológica da época, uma maneira mais prática de os teólogos interpretarem os fatos bíblicos. A única exceção foi Nyström. Até onde se sabe, ele foi o primeiro a ensinar o Dispensacionalismo para a Assembléia de Deus brasileira antes mesmo dos norte-americanos. Porém, coube a Lawrence Olson popularizar o Dispensacionalismo no Brasil, principalmente por meio de seus livros e do Instituto Bíblico Pentecostal.
É curioso ver que o Dispensacionalismo não está mais em voga nos Estados Unidos. A maior parte da Assembléia de Deus norte-americana não mais usa esse sistema de interpretação das Escrituras, que, é preciso dizer, no caso assembleiano, tinha uma pequena diferença do Dispensacionalismo clássico: os assembleianos sempre deixaram de lado a separação entre a Igreja e Israel, o que era o ponto-chave do Dispensacionalismo.
Hoje, a Assembléia de Deus norte-americana está mais voltada para “o estudo das aplicações teológicas e missiológicas do Reino de Deus”. Uma análise precisa dessa mudança de foco está em Teologia Sistemática, uma perspectiva pentecostal, nas páginas 32 e 36.
Outro ponto a ser frisado é que os missionários escandinavos, por chegarem aqui primeiro, gastaram mais tempo procurando estabelecer as bases teológicas da igreja brasileira e reforçando as doutrinas bíblicas distintivas do pentecostalismo, muito atacadas pelas igrejas tradicionais nas primeiras décadas. A maior parte dos textos doutrinários dos primeiros 30 anos do Movimento Pentecostal brasileiro era de caráter apologético, de defesa das doutrinas bíblicas pentecostais. O restante era apenas sobre pontos doutrinários básicos: Salvação, Santificação e Vinda de Jesus. Por isso, quando os missionários norte-americanos vieram, corroboraram essas bases, mas, sobretudo, erigiram um edifício sobre elas, aprofundando esses pontos doutrinários (especialmente a Escatologia Bíblica) e salientando outros, menos abordados até então (como, por exemplo, a Doutrina da Trindade, do Pecado Original e dos Anjos).
O missionário Eurico Bergstén se destaca nesse período justamente porque também foi além das bases. Por exemplo: ao falar da Salvação, Bergstén expunha e destrinchava as doutrinas bíblicas da expiação, justificação, adoção e glorificação (o que Nyström, nos anos 40, começou a fazer timidamente), e a questão da perseverança dos santos, da segurança da Salvação. Aliás, o mal entendimento desse último ponto foi o que levou a uma das primeiras cisões da história da Assembléia de Deus.
No início dos anos 30, nasceu no Nordeste do Brasil a Assembléia de Cristo, formada por obreiros nacionais, entre eles Manoel Higino de Souza, que passaram a crer que “uma vez salvo, salvo para sempre”. É que os missionários suecos não se preocupavam em falar da Doutrina da Predestinação e da Segurança da Salvação, até que um obreiro nacional leu um panfleto calvinista sobre esse assunto e começou a ensinar que aqueles que aceitam a Cristo não têm possibilidade de perder a Salvação. Ora, os escandinavos eram arminianos (os missionários da Assembléia de Deus norte-americana, que chegariam depois, também). O que foi que aconteceu? Tentaram convencer Higino do contrário, mas em vão. Por nunca terem ensinado sobre esse assunto, quando a divergência teológica surgiu, não puderam saná-la eficientemente. A maioria esmagadora apoiou os missionários suecos, mas a cisão aconteceu. Se houvesse um ensino preventivo sobre esse ponto doutrinário, talvez essa cisão nunca tivesse ocorrido.
É só a partir dos 50 que os estudos bíblicos ganham mais densidade e profundidade. A criação de institutos bíblicos foi a conseqüência direta disso. Os obreiros brasileiros precisavam se aprofundar mais no conhecimento bíblico.
Se os escandinavos fizeram um bom trabalho de base e de estabelecimento da identidade pentecostal, os norte-americanos fizeram um bom trabalho preventivo em relação a modismos. Antes que determinadas doutrinas que já eram populares nos EUA ganhassem força no Brasil, eles preveniam os obreiros sobre elas. Por exemplo, na Convenção Geral de 1962, em Recife, são o missionário Lawrence Olson e o pastor Raymond Carlson, então presidente do Instituto Bíblico da Assembléia de Deus em Minessota (e que depois seria líder do Concílio Geral das Assembléias de Deus nos EUA) que previnem os obreiros, em estudo bíblico, sobre os perigos do ecumenismo, uma onda nova na época. Ao final daquela convenção, Olson, Bergstén e o pastor Alcebíades Vasconcelos, representando os obreiros brasileiros, assinam um documento, em nome da CGADB, contra o ecumenismo.
Ainda havia os estudos dos norte-americanos sobre os erros do evolucionismo, o liberalismo teológico, a Teologia da Libertação etc. Como reflexo desse ensino, surgiram muitos bons livros de autores nacionais sobre esses assuntos nos anos seguintes. O pastor Abraão de Almeida, por exemplo, escreve nos anos 80 sua Teologia Contemporânea (CPAD), com prefácio de Lawrence Olson. Nascia a reflexão teológica, estimulada pelos norte-americanos.
Outro exemplo: a febre pela Escatologia Bíblica no Brasil foi encetada pelos norte-americanos e incentivada pela conjuntura internacional - a Guerra Fria. Nesse período, depois da reedição de O Plano Divino Através dos Séculos nos anos 70 e do lançamento do polêmico Alinhamento dos planetas (1980), ambas obras de Olson, surgiu uma demanda decorrente do interesse despertado dos crentes por Escatologia. É quando surgem muitas obras teológicas em profusão sobre o assunto, como as dos pastores Antonio Gilberto, Abraão de Almeida e Severino Pedro. O detalhe é que a visão escatológica de muitas dessas obras era importada da visão escatológica norte-americana. A significativa obra Israel, Gogue e o Anticristo (CPAD), de Abraão de Almeida, que marcou época e vendeu mais de 50 mil exemplares, é um exemplo. As interpretações sobre a profecia contra Gogue (Ezequiel 38), vista como uma referência à Rússia e à China, são uma influência clara da Escatologia norte-americana. Os escandinavos não se preocupavam com esses pormenores. Sua Escatologia era menos detalhista e pouco especulativa. Preocupava-se mais com o entendimento do essencial.
ÚNICO E RELATIVO CASO DE DIVERGÊNCIA
E quanto às discrepâncias de conteúdo entre a Teologia pentecostal escandinava e a norte-americana?
Como já ressaltei, foi só depois dos anos 50 que o estudo das doutrinas bíblicas foi mais aprofundado na Assembléia de Deus brasileira. Assim, se houvesse alguma discrepância teológica entre os escandinavos e norte-americanos, ela surgiria a partir de esse período, pois é na exposição dos detalhes que surgem as diferenças. Porém, o que se via era uma concordância mútua. A única diferença encontrada, mas não muito explorada, foi quanto à Doutrina da Criação do Universo. Aqui, sim, encontramos a única divergência teológica concreta entre escandinavos e norte-americanos. Mesmo assim, relativa.
Eurico Bergstén, em sua Teologia Sistemática, ensinava a Teoria da Recriação da Terra (também chamada de Teoria da Lacuna), que diz que entre Gênesis 1.1 e 1.2 há um interregno de tempo, onde teriam ocorrido a queda de Satanás e o caos no Universos. A Terra, que teria sido criada perfeita antes de Lúcifer cair, teria ficado, após a queda do ser angelical, sem forma e vazia. Logo, o relato que vai de Gênesis 1.2 em diante seria não o da criação da Terra, mas da recriação. Isso pode ser visto nas páginas 49 e 52 de sua obra. “A Terra foi restaurada em seis dias”, assevera Bergstén.
Ao que parece, nem todos os missionários norte-americanos simpatizavam muito com essa teoria. Lawrence Olson, porém, seria uma grande exceção, o que relativiza essa discrepância. Ele ensinava o mesmo, como pode ser visto nas primeiras páginas de O Plano Divino Através dos Séculos. Mas, a obra Teologia Sistemática, uma perspectiva pentecostal, escrita pelos Teólogos da Assembléia de Deus norte-americana, rechaça essa teoria, como pode ser visto nas páginas 232 a 235. “A Teoria da Lacuna apresenta várias fraquezas”, arremata conclusivamente os pastor e teólogo Timothy Munyon.
Como vimos, as diferenças eram muito pequenas. A Teologia era praticamente a mesma em todos os pontos. E isso foi muito bom, porque fortes divergências teológicas criariam cismas. Se hoje a Assembléia de Deus é minimamente unida e consolidada em sua identidade teológica, deve isso à influência desses nobres missionários escandinavos e norte-americanos, que deram as suas vidas pela evangelização e estabelecimento da obra de Deus em nosso país.
*Silas Daniel, é Ministro do Evangelho, jornalista, conferencista e autor dos livros A Sedução das Novas Teologias, Habacuque - a vitória da fé em meio ao caos e História da Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil. Todos pela CPAD.
Manual do Obreiro (CPAD) - 2006.
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