quinta-feira, 17 de março de 2011

CRISTOCENTRISMO versus MARIOCENTRISMO NA RENOVAÇÃO CARISMÁTICA

“Porque ninguém pode pôr outro fundamento além do que já está posto, o qual é Jesus Cristo” (1Co 3.11)
Por José Gonçalves Gomes
A expressão “mudança de paradigma” é freqüentemente usada pelos historiadores da filosofia. Na Grécia antiga, os filósofos pré-socráticos, também denominados de “naturalistas”, preocupavam-se em dar explicações sobre o “arché”, ou princípio de todas as coisas. Para Tales de Mileto, que viveu no século 7º a.C, esse princípio, do qual todas as coisas derivaram, era a “água”. Por outro lado, para Anaximandro, que viveu entre os séculos 7º e 6º a.C., o “apeiron”, ou o ilimitado, explicaria a origem de todas as coisas. Já Anaxímenes afirmava que o “ar”, não a água, era o “arché” de todas as coisas. Até aqui esses pensadores estavam preocupados em dar explicações sobre o “cosmo”.

A grande mudança no pensamento grego, como afirmam os historiadores da filosofia, veio com os “sofistas” (os sábios). Com a escola sofística, “o homem”, não “o cosmo”, passou a ser o centro do Universo. Protágoras de Abdera, que viveu entre 491 e 481 a.C, afirmou ser “o homem a medida de todas as coisas”. Nesta frase de Protágoras está revelada a grande mudança de paradigma na história do pensamento Ocidental; a visão de mundo deixou de ser cosmocêntrica para se tornar antropocêntrica. O homem agora passava a ser o centro das atenções na filosofia ocidental.

Quanto mais observo o movimento de renovação católica, mais convencido fico a respeito dessa “mudança de paradigma” no pensamento carismático cristocêntrico no passado e mariocêntrico no presente. A diferença entre a mudança de paradigma do pensamento grego para o carismático é que aquele foi uma mudança que provocou um progresso na civilização, enquanto este promoveu um retrocesso dentro da renovação.

Ainda muito cedo em sua história, a renovação carismática demonstrava ser incompatível com o catolicismo tradicional. Seus traços doutrinários, que lembravam os pentecostais clássicos, incomodavam o clero romano. Por isso, “em 1974 o movimento abandonou o termo pentecostal por outro mais neutro: carismático, para não ser confundido com os pentecostais mais antigos”.1 Quando examinamos o Novo Testamento, observamos que a diferença entre esses termos, imposta pela renovação carismática, não tem fundamento, uma vez que as palavras pentecostal e carismático, podem ser  encontradas nas páginas sagradas como sinônimas, suas diferenças são puramente didáticas. A palavra pentecostal, aplicada no início da vinda do Espírito Santo, conforme registrada no livro de Atos 2.4, posteriormente tornou-se sinônimo dos carismas desse mesmo Espírito.

A propósito, observa a Enciclopédia Judaica: “O termo ‘pentecostal’, derivado de ‘pentecostes’, é uma tradução grega para a palavra hebraica shavuot (semanas), uma das mais importantes festas do judaísmo antigo. Os judeus helenistas [...] que só utilizavam o idioma grego, chamavam o shavuot de ‘pentecostes’ (do grego, Pente Kostus, que significa ‘qüinquagésimo’) porque era festejado cinqüenta dias após a oferenda do molho de cevada que se fazia no Templo de Jerusalém, no segundo dia de Pessach (páscoa)”.2

Como o derramamento do Espírito Santo (At 2.1-4) aconteceu nesse dia, o termo “pentecostal” ficou associado às manifestações do Espírito de Deus. É precisamente isso o que diz o expositor bíblico J. D. G. Dunn, ao falar sobre A significância do pentecostes para os cristãos primitivos: “O Pentecostes significa, primeiramente, o derramamento do Espírito que Deus prometeu para os tempos do fim. As manifestações carismáticas e estáticas que se atribuíam ao Espírito de Deus eram um aspecto distintivo e importante do cristianismo palestino mais primitivo, bem como do cristianismo helenístico posterior [...]. Atos 20.16 pode até indicar que a igreja em Jerusalém observava o Pentecostes como aniversário do derramamento do Espírito”.3

Por outro lado, o termo carismático, que vem do grego charismatón (derivado de charizomai – “dom”, “graça”), aparece na primeira carta aos Coríntios (12.4), quando Paulo usa o termo para também se referir às manifestações do Espírito Santo na Igreja. Archibald Thomas Robertson, erudito em língua grega, comenta em The Word’s New Testament Pictures, que essa palavra “significa um favor [...] concedido ou recebido sem um mérito”.4 O charismaton passou a ser um termo também usado para os dons do Espírito Santo.

Querer fazer uma diferença abismal entre esses termos, como pretende a renovação, é revelar claramente a ideologia desse movimento, que tenta dar-lhe uma identidade mais católica. Em seu livro Carismáticos e pentecostais – adesão na esfera familiar, a socióloga Maria das Dores C. Machado mostra que a ingerência na Renovação Carismática, principalmente pelo papado, tem a nítida intenção de controlá-la. A doutora Machado afirma: “De maneira geral, revelam um esforço da hierarquia da igreja, sobretudo do papado, em controlar o movimento, evitando possíveis cismas e, ao mesmo tempo, canalizar a militância evangelizadora em favor da religião católica. A devoção à Virgem Maria foi estimulada para demarcar as fronteiras entre o catolicismo e o pentecostalismo e, em certa medida, reforçar a identidade religiosa dos carismáticos”.5

Não há, pois, como negar que a renovação católica moderna perdeu aquela identidade pentecostal que caracterizou o início de seu movimento, para se tornar uma caixa de ressonância do catolicismo tradicional.
Reavivamento mariano
Doutrinas que tiveram suas origens na Idade Média, a conhecida Idade das Trevas, começaram a ser incorporadas à Renovação: “Uma das características bem peculiar da Igreja Católica é a sua flexibilidade para assimilar novas tendências, sem dividir. Isto aconteceu com o movimento carismático católico que alcançou seu ápice na década de 70, mas, com o tempo, a hierarquia católica começou a dar algumas diretrizes ao movimento para que se tornasse mais católico. Entre essas diretrizes estava uma ênfase maior na participação da missa, na eucaristia e na veneração a Maria”.6

Até aqui já é possível percebermos que de fato houve uma mudança de paradigma no pensamento da Renovação Carismática, outrora cristocêntrico, agora centralizado na Virgem Maria. É precisamente isso o que diz Paulo Romeiro, quando põe em destaque esse enfoque mariano por parte da renovação carismática: “O movimento carismático não se afasta da idolatria. Ao mesmo tempo em que fala do Senhor, fala da senhora [...] os líderes do movimento carismático confirmam, na mídia, que o objetivo deles é exaltar nossa senhora. Dizem que precisam ‘restaurar o espaço de Maria’”.7

Ficamos perplexos quando vemos importantes líderes carismáticos renovando o marianismo, uma doutrina estranha às Escrituras Sagradas. O marianismo se tornou a pedra fundamental no atual movimento de renovação carismática. Vemos isso, por exemplo, quando lemos as palavras do padre mexicano, o carismático Salvador Carrillo Alday, que, ao comentar sobre os “frutos do Espírito”, coloca a devoção a Maria como sendo um deles. Veja:

• Verdadeira conversão a Deus e renovação interior bastante profunda.
• Experiência de nova relação de intimidade com Cristo.
• Forte consciência de que a comunidade religiosa só pode ser criação do Espírito Santo, que derrama em nossos corações o amor de Deus.
• A fome da Palavra de Deus (Am 8.11).
• A volta para uma devoção séria e centralizada na Santíssima Virgem”.8

Como prova desse “fruto do Espírito”, Carrillo apresenta testemunhos de carismáticos que, na busca de seu “pentecostes” ou na própria experiência do “batismo no Espírito Santo”, põem em relevo a pessoa de Maria. Lemos o testemunho de um desses batizados: “Recebi o batismo no Espírito e devo dizer que o Senhor agiu maravilhosamente comigo e estou muito satisfeito [...] verifiquei claramente a presença singular da Virgem Maria na ação carismática do Espírito nas almas”. Um outro testemunho diz: “Cresci no amor de Maria, e com grande alegria aproximo-me mais do Pai [...] o Senhor e a Virgem Santíssima eram meus grandes confidentes; neles encontrei força para continuar”; e mais: “a Virgem Maria estava muito próxima de mim como mãe”.9

Ainda na mesma obra, o autor, ao falar sobre a Oração na renovação carismática, responde à pergunta: “E o que dizer da Virgem Maria, Mãe de Jesus?”. Resposta: “Sempre está presente em todo o grupo de oração. E é normal e devido, pois, assim como participou tão intimamente do mistério de Jesus, da encarnação do Filho de Deus durante sua vida na terra, ao pé da cruz e da efusão do Espírito Santo no dia de pentecostes, assim também, cada vez que se procura construir o corpo de Cristo, a Igreja reconhece sua presença de mãe e sente sua poderosa intercessão a favor de todos os filhos seus. Ela é verdadeiramente a Mãe da comunidade orante”.10

Para o carismático Isac Valle, entre os muitos efeitos produzidos pela renovação carismática, um deles é “um grande apreço pela devoção a Maria Santíssima”.11  As palavras: “devoção” e “intercessão”, ligadas à pessoa de Maria, são freqüentemente citadas nas obras de autores da renovação carismática. O também carismático padre italiano S. Falvo afirma em sua obra O Espírito Santo nos revela Jesus, que é Maria quem revelará Jesus nas páginas do seu livro. Ele declara: “E será Maria, a criatura que a Cristo mais se assemelha e que conheceu a Jesus mais e melhor do que todos os homens, quem no-lo revelará”.12 Em palavras mais simples, para Falvo, é Maria e não o Espírito Santo o agente da revelação divina.

É bem verdade que esse ranço mariano na RCC já aparecia entre alguns dos primeiros carismáticos, todavia, não de forma tão acentuada, nem nas proporções em que se encontra hoje, pois, como já falamos, a grande maioria dos primeiros carismáticos era cristocêntrica.

Em seu livro, Católicos pentecostais, Kevin Ranaghan relata algumas experiências de supostos “batismos no Espírito Santo” no início desse movimento, que nos permitem enxergar claramente isso. Lemos: “Descobri uma profunda devoção a Maria, e posso agora louvar a Deus”.13 Ranaghan continua citando mais testemunhos: “Como muitos dos nossos amigos já descobriram, o Espírito Santo renovou nosso amor pela igreja. Onde antes havia apenas o verniz institucional para nós, descobrimos agora vida, poder e calor. As devoções naturais, como a de Maria, por exemplo, tornaram mais significativas”.14

Tudo o que temos afirmado até aqui não se trata de frases soltas nem descontextualizadas. Importantes vozes dentro da renovação há muito empunharam a bandeira do marianismo. O cardeal Suenens, respeitada autoridade dentro da renovação carismática, fala de uma “comunhão do Espírito Santo em Maria”. E diz mais: “A união vivida com Maria é da mesma ordem: respirar Maria é respirar o Espírito Santo”.15

Atento a toda essa nova ênfase dada à pessoa da Virgem Maria por parte da renovação carismática católica em solo americano, a obra The New International Dictionary of Pentecostal and Charimastic Movements, traz uma importante observação sobre o assunto. Após analisar cinco das principais diferenças entre os pentecostais clássicos e a renovação carismática católica, esta conceituada obra conclui: “A abençoada virgem Maria, embora simbolicamente não ocupe o foco da reunião da renovação carismática católica (americana), é, todavia, esperada estar presente e algumas vezes é invocada em hinos ou orações. Participantes da renovação católica carismática que têm achado o seu caminho dentro do movimento mariano, tendo crescido acostumado a agir como canal de mensagens do céu, podem não hesitar em expressar profecias que crêem ter recebido da parte de Maria ou de outros santos por meio de sonhos, visões ou “locuções interiores”.16

Em sua defesa, teólogos caris-máticos fazem um verdadeiro malabarismo exegético, no sentido de justificar essas crenças antibíblicas, em especial o culto à pessoa de Maria. Muitos deles, seguindo Tomás de Aquino,17 tentam, de forma perspicaz, fazer uma diferença, que logicamente não existe, entre “venerar” e “adorar” ou entre “latria” e “dulia”, enquanto outros afirmam que somente “no catolicismo popular” as pessoas confundem esses termos.
Renovação carismática versus catolicismo tradicional
Façamos uma breve reflexão sobre as afirmações feitas até aqui, tanto por parte da renovação carismática como também por parte do catolicismo tradicional, no que concerne ao destaque dado à “devoção” a Maria e seu papel de “intercessora” e até mesmo como aquela que “revela” a pessoa de Cristo.

No mínimo, essas afirmações são problemáticas, pois contrariam o ensino das Sagradas Escrituras. Primeiramente, a Bíblia diz: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele servirás” (Mt 4.10). Em segundo lugar, a Escritura afirma que só existe um mediador entre Deus e os homens, que é Jesus Cristo: “Porquanto há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem” (1Tm 2.5). Em terceiro, a Bíblia diz que o agente da revelação divina é o Espírito Santo. É Ele quem nos revela a pessoa de Jesus: “Mas, quando vier aquele, o Espírito de verdade, Ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará o que há de vir” (Jo 16.13). Em quarto e último lugar, a Escritura é taxativa em afirmar: “...e a nossa comunhão é com o Pai, e com seu Filho Jesus Cristo” (1Jo 1.3).

Todos esses problemas teológicos insuperáveis dentro da atual renovação carismática, com uma teologia medieval enxertada em seu seio e que a leva a se autocontradizer, nos mostram que essa crise pela qual passa a atual renovação católica é estrutural. Em palavras mais simples, o problema é mais sério do que comumente se tem pensado, uma vez que se encontra nos alicerces sobre os quais a renovação foi edificada.

Notas
1 Defesa da Fé, março/abril de 1999. Instituto Cristão de Pesquisas (ICP), São Paulo. p.14.
2 KOOGAN, A. Enciclopédia judaica, vol. 6, p. 777, Rio de Janeiro, 1990.
3 DUNN, J.D.G. in Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. Vol. III. Edições Vida Nova, São Paulo, SP, 1984.
4 ROBERTSON, A.T. Robertson’s The Words New Testament Pictures. Sociedade Bíblica do Brasil. 1999.
5 MACHADO, M.ª da Dores Campos, Carismáticos e pentecostais, p.48.
6 Defesa da Fé, op. cit.
7 Vinde, julho de 1996. Visão Nacional de Evangelização, Niterói, Rio de Janeiro.
8 ALDAY, Salvador Carrillo. A Renovação Carismática e as comunidades religiosas. Ed. Ave Maria. São Paulo, 1999.
9 ALDAY, Salvador Carrillo, p.55, 58, 63, 67.
10 Ibid., p. 37-8.
11 VALLE, Isac Isaías. A Renovação Carismática: rumo ao terceiro milênio cristão. Ed. Loyola, São Paulo.
12 FALVO, S. O Espírito Santo nos revela Jesus. Edições Paulinas, São Paulo, p.33, 1983.
13 RANAGHAN, Kevin. Católicos pentecostais. Orlando S. Boyer, Pindamonhangaba, São Paulo, p.92, 1972.
14 Ibid. p.114.
15 SUENENS, Léo – Joseph. A Renovação Carismática – um novo pentecostes? – Paulus, Apelação, Portugal, 1999.
16 BURGESS, Stanley M. & MAAS, Eduard M Van Der. The New International Dictionary of Pentecostal and Charismatic Movements. Zondervan, Grand Rapids, Michigan, U.S.A, 2002.
17 AQUINO, Tomás. Suma Teológica. Edição bilíngüe: latim/português.  Escola Superior de Teologia, São Lourenço de Brinde, Rio Grande do Sul, 1980.
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